Olhares Interseccionais

Marco temporal: Reflexo do colonialismo e uma afronta aos direitos humanos e à Constituição Federal de 1988

O texto trata da PEC que altera o artigo 231 da CF e da lei 14.701/23, que estabelecem um marco temporal para a ocupação das terras indígenas, fixando a data de 5 de outubro de 1988 (promulgação da Constituição) como referência para o reconhecimento dessas terras.

17/12/2024

A proposta de emenda constitucional para a alteração do Artigo 231 da Constituição Federal, bem como a lei 14.701/2023, ao fixarem um marco temporal para a ocupação das terras indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988, praticam uma das maiores ameaças aos direitos dos povos originários no Brasil, pois ao condicionarem o reconhecimento de terras indígenas à comprovação de ocupação no dia 5 de outubro de 1988, ignoram séculos de violência, expulsão e deslocamento forçado dos povos indígenas, que historicamente tiveram suas terras invadidas e apropriadas. Essas medidas desconsideram não apenas a trajetória histórica de injustiça sofrida pelos povos indígenas, mas também o profundo vínculo espiritual, cultural e social que eles mantêm com suas terras ancestrais. 

De início, é importante frisar que a relação dos povos indígenas com a terra transcende o conceito ocidental de propriedade. Para essas comunidades, a terra é muito mais do que um recurso econômico; é fonte de vida, de identidade cultural e de conexão espiritual com os ancestrais e com a natureza. 

É certo que é difícil compreender tal relação a partir do modo de vida capitalista que vivemos, contudo, se o/a caro/cara leitor/leitora tiver um pouco de sensibilidade e dar-se a oportunidade de perceber outros modos de vidas, perceberá que a demarcação de terras na perspectiva indígena não é um privilégio, mas uma necessidade fundamental para a sobrevivência física, cultural e espiritual desses povos. Explico melhor: o marco temporal desconsidera a íntima relação do indígena com a terra e reduz os direitos indígenas a uma lógica jurídica restritiva, que não leva em conta os impactos históricos do colonialismo e da violência sistemática que os povos originários enfrentaram ao longo dos séculos. 

Com a simples análise do contexto no qual houve aprovação da lei 14.701/2023 e a apresentação da PEC 48 (após o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 pelo STF, que rechaçou tal tese) é possível perceber que ainda somos influenciados pelo colonialismo que, mesmo após séculos, ainda se manifesta nas estruturas políticas, econômicas e culturais do Brasil, ou seja, o colonialismo não se restringe ao passado; ele continua presente na marginalização dos povos indígenas, no desmatamento das florestas e na exploração dos recursos naturais em terras tradicionalmente ocupadas por essas comunidades. A lógica do marco temporal é uma extensão dessa mentalidade colonial, que prioriza interesses econômicos de curto prazo em detrimento da preservação ambiental, dos direitos humanos e do respeito às culturas originárias. 

É urgente adotar uma perspectiva decolonial para enfrentar essas questões, ou seja, romper com as estruturas coloniais que ainda moldam a sociedade brasileira, incluindo a forma como o Estado trata os povos indígenas e suas reivindicações territoriais. Em vez de impor um marco temporal arbitrário, é necessário reconhecer que a luta dos povos indígenas por suas terras é também uma luta pela preservação da memória, da justiça histórica e da diversidade cultural que compõem a identidade brasileira. 

Por outro lado, é importante mencionar que a tese do marco temporal também viola tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A Convenção 169, por exemplo, estabelece o direito dos povos indígenas à posse e ao uso de suas terras, reconhecendo que esses territórios são essenciais para a manutenção de sua cultura e modos de vida. Da mesma forma, a Declaração da ONU afirma que os Estados devem respeitar, proteger e garantir os direitos dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais, independentemente de circunstâncias históricas. 

Ao ignorar esses compromissos internacionais, o Brasil não apenas desrespeita os direitos dos povos indígenas, mas também compromete sua reputação global. Essa postura reforça uma narrativa de negligência aos direitos humanos, colocando o país em desacordo com o que se espera de uma nação que se orgulha de sua pluralidade cultural e de sua biodiversidade, ambas profundamente interligadas com os territórios indígenas. 

Pelo já exposto é possível perceber que a não demarcação de terras indígenas, agravada pela proposta do marco temporal, tem consequências devastadoras para os povos originários e para a sociedade como um todo. A ausência de territórios protegidos expõe as comunidades indígenas a conflitos fundiários, ameaças de violência e ao avanço do agronegócio e da mineração ilegal. Além disso, a destruição das terras indígenas representa uma grave ameaça ao meio ambiente, uma vez que esses territórios desempenham um papel crucial na preservação de biomas como a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal. 

Os povos indígenas são parte essencial da cultura e da história do Brasil. Suas línguas, tradições e conhecimentos enriquecem a identidade nacional e oferecem perspectivas únicas sobre a relação entre o ser humano e a natureza. Negar os direitos territoriais desses povos é enfraquecer a própria cultura brasileira, reduzindo sua pluralidade e diversidade. 

Acrescento, ainda, que o marco temporal é, acima de tudo, uma negação da justiça histórica. Ele desconsidera que os povos indígenas sofreram séculos de invasões, expulsões e massacres, muitas vezes perpetrados pelo próprio Estado ou com sua conivência. Ao exigir que essas comunidades provem a ocupação contínua de suas terras até 1988, a proposta ignora que muitos foram forçados a abandonar seus territórios em razão da violência e da opressão. 

Reconhecer os direitos territoriais dos povos indígenas não é apenas uma questão de reparar injustiças passadas, mas de garantir um futuro mais justo e sustentável para todos os brasileiros. O Brasil precisa honrar sua história, respeitar seus compromissos internacionais e adotar um pensamento decolonial que valorize a pluralidade cultural e a dignidade humana. 

Portanto, qualquer tentativa de se impor o marco temporal para a ocupação de terras indígenas em 5 de outubro de 1988 representa um grave retrocesso para os direitos humanos, a preservação ambiental e a cultura brasileira. É essencial rejeitar essa medida e promover políticas que respeitem os direitos dos povos indígenas, reconheçam sua importância para a identidade nacional e garantam a justiça histórica que lhes é devida. Somente assim o Brasil poderá avançar em direção a uma sociedade mais justa, plural e sustentável.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.