Olhares Interseccionais

“Tempo é o vento, vento é tempo” : Ancestralidade e resistência dos povos de terreiros do Engenho Velho da Federação

Uma reflexão poderosa sobre a resistência negra, destacando a luta contra o racismo religioso na Caminhada dos Terreiros e o significado do 20 de novembro.

25/11/2024

Fogo!...Queimaram Palmares,

Nasceu Canudos.

Fogo!...Queimaram Canudos,

Nasceu Caldeirões.

Fogo!...Queimaram Caldeirões,

Nasceu Pau de Colher.

Fogo!...Queimaram Pau de Colher...

E nasceram, e nascerão tantas outras comunidades

que os vão cansar se continuarem queimando.

Porque mesmo que queimem a escrita,

Não queimarão a oralidade.

Mesmo que queimem os símbolos,

Não queimarão os significados.

Mesmo queimando o nosso povo,

Não queimarão a ancestralidade.

Nego Bispo 

Há muito tempo eu procuro o saudosismo das palavras para escrever um texto leve. E essa leveza é no sentido de falar sobre acontecimentos bons, sobretudo para a população negra. No país como o nosso, em que os filhos pretos deste solo não recebem a gentileza da Pátria amada, é sempre muito difícil achar assunto que beire a tranquilidade. Estamos sempre atentos, precisamos ser fortes, sobretudo porque temer a morte é uma constante.

É também por conta desses acontecimentos que o nosso destino se cruza em busca de um bem comum, a união. E aqui eu trago dois marcos do mês de novembro: O primeiro é a Caminhada dos Terreiros do Engenho Velho da Federação, bairro tradicional e periférico de Salvador-BA e o segundo é a proximidade do dia da caminhada com o 20 de novembro, marco histórico para a população negra.

A Caminhada pelo fim da violência e da intolerância religiosa e pela paz, teve início em 2004, por conta da necessidade veemente de publicizar o combate e a luta dos povos de terreiros, contra o racismo religioso. A idealizadora é Valnízia Bianch, Yalorixá do terreiro do Cobre, conhecida como Mãe Val, que encontrou o apoio de Valdina de Oliveira Pinto, (já ancestral), Makota, representando o terreiro Nzo Onimboyá.

O ponto de partida é o monumento de Mãe Runhó, localizado no final de linha do Engenho Velho da Federação, uma homenagem à Maria Valentina dos Anjos Costa, conhecida como Doné Runhó, falecida em 1975. O busto, tombado como patrimônio histórico da cidade de Salvador, é alvo de constantes depredações, assim como outras esculturas de autoridades do candomblé, a exemplo do busto de Mãe Gilda de Ogum, localizado em Itapuã1 e a estátua de Mãe Stella de Oxóssi, localizada na Av. Mãe Stella de Oxóssi2.

A data escolhida para a caminhada é o 15 de novembro, dia da Proclamação da República, feriado nacional. Esse dia marca a liberdade de poder caminhar pelas ruas de um bairro lembrado pela polícia e esquecido pelas autoridades públicas.

“O negro tem que deixar de ser objeto para ser sujeito”, conforme Makota Valdina nos ensinou e há 20 anos, o 15 de novembro no Engenho Velho da Federação é regido pelas vestes imponentes dos praticantes das religiões de matriz africana, que em coro alto e afinado entoam cânticos de todas as nações do candomblé. O saudoso xirê é realizado em praça pública, o tapete branco toma conta das ruas e o encontro entre irmãos e irmãs de fé, constitui a ligação ancestral.

O trajeto inclui a rua Apolinário Santana, principal acesso ao bairro do Engenho Velho da Federação, passando pela Avenida Cardeal da Silva e Avenida Vasco da Gama, homenageando os terreiros ali presentes, a exemplo do Terreiro do Bogum, Nzo Tanuri Junsara, Terreiro do Cobre, Nzo Onimboyá, Terreiro do Gantois, Terreiro Tumba Junsara, Ilê Axé Oxumaré, Terreiro da Casa Branca, retornando ao monumento, através do acesso pela Ladeira Manoel Bonfim, até o Terreiro do Cobre, onde acontece a entrega do Amalá, alimento sagrado, partilhado por toda a comunidade.

Esse movimento pode ser traduzido pela sentença de que “Somos povos de trajetórias, não somos povos de teoria. Somos da circularidade: começo, meio e começo. As nossas vidas não têm fim. A geração avó é o começo, a geração mãe é o meio e a geração neta é o começo de novo” e dessa forma o pensamento de Nego Bispo auxilia na tradução das nossas (R)existências.

O dia 20 de novembro de 2024 foi a primeira vez em que o Brasil celebrou o dia nacional de zumbi e da Consciência Negra como feriado nacional, por conta da lei 14.759/23, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 21 de dezembro de 2023.  

Este, é mais um dia de luta e comemoração. Nós celebramos o movimento da consciência negra, conceito este cunhado inicialmente em um manifesto político pelo sul africano Steve Biko, um dos maiores nomes do ativismo negro contra o apartheid e a proposta é trazer a contranarrativa.

Ressignificar o 20 de novembro para reescrevermos a nossa história. Abandonar metodologicamente o estudo dos descendentes de escravos pelo estudo do negro brasileiro que possui uma descendência imponente e que nunca foi pacífico à perversidade da escravização.

E traduzido por Lélia González sabemos que “Esse deslocamento de datas (do 13 de maio para o 20 de novembro) não deixa de ser um modo de assunção da paternidade de Zumbi e a denúncia da falsa maternidade da princesa Isabel. Afinal, a gente sabe que a mãe-preta é que é a mãe”.3

Nzambi ua kuatesa.

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1 Disponível aqui. 

2 Disponível aqui. 

3 Disponível aqui. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Lélia González. 

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Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.