Olhares Interseccionais

Vinícius Júnior venceu: “Enquanto o leão não aprender a contar suas histórias, as vitórias da caça serão sempre do caçador”

Vinícius Jr., estrela do Real Madrid, enfrenta o racismo europeu com coragem, recusando-se a ser silenciado e ganhando destaque na luta antirracista.

4/11/2024

Muito se comentou na mídia e nas redes sociais sobre o prêmio “Bola de Ouro” e o fato de Vinícius Júnior, o jogador brasileiro favorito ao título na temporada 2023/2024, haver sido preterido em favor do espanhol Rodrigo Hernández Cascante, vencedor da premiação. A “Bola de Ouro” premia o melhor jogador de cada temporada e foi introduzida no mundo esportivo pela revista France Football, em 1956. Os critérios de pontuação levam em conta desempenho individual, títulos coletivos e imagem pública do jogador (dentro e fora do campo).

Pelos dois primeiros critérios Vinícius Júnior ganharia o prêmio. Entretanto, a análise do último critério, como se deduz facilmente, estava sujeita ao subjetivismo dos avaliadores. Tanto é assim, que o fato de Rodrigo Hernández haver sido suspenso pela UEFA (União das Associações Europeias de Futebol), por entoar “Gibraltar é espanhol” na comemoração do título da Euro 2024, manifestação tida por ofensiva e discriminatória pelos gibraltinos, parece não haver sido considerado por aqueles que o pontuaram com nota máxima. 

Nascido em São Gonçalo, Baixada Fluminense, Vini Jr., como é conhecido, tem 24 anos e joga na Espanha desde 2018. Foi vendido pelo Flamengo ao Real Madrid por 45 milhões de euros, maior valor pago por um futebolista com menos de 19 anos de idade. Estrela maior do Real Madrid, homem negro retinto e de origem humilde, tem sido vítima de racismo nos estádios europeus por onde passa. O talento, os inúmeros gols e assistências, os títulos, prêmios e o poder econômico não foram suficientes para blindá-lo contra tal violência. Não houve jogo na temporada 2023/2024 em que ele não tenha sido perseguido, xingado ou ofendido pela torcida ou por jogadores adversários.

Muitos em seu lugar teriam sucumbido à pressão psicológica e ao imenso desgaste emocional, optando pelo silêncio, ou até mesmo por abandonar a carreira. Entretanto, Vini Jr., de cabeça erguida e peito aberto, enfrenta o preconceito racial, inclusive judicialmente, fortalecendo condutas antirracistas e servindo de exemplo para milhares de jovens negros (as) que, como ele, enfrentam cotidianamente o racismo. E apesar de tudo que vem sofrendo com apenas 24 anos, segue sendo um jogador excepcional, o que é admirável.

Embora os fatos a ele relacionados tenham ocorrido na Europa, os ecos das reações a eles nos alcançaram e geraram imensa repercussão no Brasil e no mundo, com intensos debates na mídia e nas redes sociais.

O racismo, como se sabe, é fenômeno planetário, decorrente do colonialismo e da sujeição da população negra à escravidão, devendo por isso ser mundialmente combatido. Nesse sentido, a legislação internacional sobre o tema estabelece que o marcador raça não pode dar origem a desigualdades de direitos, sejam eles coletivos ou individuais, nem, tampouco, violar a dignidade da pessoa humana.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê em seus artigos 1 e 2 que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” e que “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”.

Já a convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, instrumento global de proteção dos direitos humanos adotado pelas Nações Unidas em 21 de dezembro de 1965, estabelece que “Os Estados Partes condenam a discriminação racial e comprometem-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem tardar uma política de eliminação da discriminação racial em todas as suas formas e de promoção de entendimento entre todas as raças”. Conceitua a discriminação racial como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública”

A mencionada convenção prevê ainda a existência de um CERD - Comitê para Eliminação da Discriminação Racial, composto por 18 peritos eleitos em escrutínio secreto, e que têm como função examinar relatórios enviados pelos Estados-Membros sobre as medidas legislativas, judiciárias, administrativas ou outras que tomarem para tornarem efetivas as disposições previstas na Convenção. Saliente-se que desde a criação do CERD, tanto a Espanha, quanto o Brasil, além de outros países, receberam recomendações para aprimorar o tratamento interno dado à questão racial, visando a adoção de medidas em sintonia com os princípios e normas norteadores das políticas antidiscriminatórias previstas para os Estados-Membros. 

Apesar disso, e de toda a luta dos negros e negras nos diversos países, o racismo persiste e se reinventa ao longo dos anos, criando mecanismos cada vez mais sutis e engenhosos para perpetrar a discriminação, tentando calar a voz daqueles que buscam tratamento humano e igualitário, independentemente da raça que lhes é socialmente atribuída.

Vini Jr. segue perseguido, dentro e fora dos gramados, por torcedores, adversários, imprensa e dirigentes, que o acusam de provocar a ira daqueles que o violentam. O último capítulo da perseguição terminou com sua classificação em segundo lugar para o prêmio “Bola de Ouro”. Embora vítima, quiseram transformá-lo em provocador e “negro agressivo e prepotente”, pecha tão comum àqueles que ousam não se calar e se recusam a ocupar o lugar do eterno subalterno. 

Ele não se curvou, não se calou, e não se calará. Continua lutando e expondo a sociedade racista na qual está inserido. Ao ausentar-se da premiação, sagrou-se vencedor na luta antirracista, entrando para a história do futebol não apenas por seu talento incontestável, mas também, e talvez principalmente, por não se render ao "establishment" vigente.

Como já dizia o antigo e sábio provérbio africano, “enquanto o leão não aprender a contar suas histórias, as vitórias da caça serão sempre do caçador”. O leão venceu.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.