Olhares Interseccionais

Dia das crianças no Brasil: A bala não é de festim. É chumbo e chumbinho, neguinho

Érika Costa explica como o racismo impacta a infância de crianças negras, abordando exclusão, violência e desamparo, contrastando com a necessidade de afeto e direitos.

14/10/2024

“A imagem de infância enche os olhos de lágrimas rapidamente escorraçadas pela violência dos padrões. A adolescência chega com força para policiar os pixains e a vergonha passa a fazer parte de sua relação com ele1”.

As lágrimas copiosamente derramadas ao ler Aconchego pela primeira vez denunciavam o efeito contrário do que deveria ser acolhimento. O ser criança negra num país racista pode remeter a uma infância no íntimo da terminologia da palavra, é um não falar, não sorrir, não brincar, não sonhar, não ter, não sentir. Pode ser uma infinidade de oposições. 

Quando se é uma criança negra em uma sociedade racista, as oposições vêm acompanhadas também de suposições, é sobre não ser o que se é e o que se quer, mas ser o que lhe é racialmente determinado. É um não ser inteligente, e sim cheio de ousadia. É um não ser competente, e sim esperto demais. É um não ser capaz, e sim malandrinho. 

As vivências da infância moldam o desenvolvimento humano em todos os aspectos, físico, mental, social e emocional, de modo que o processo de subjetivação imposto pela sociedade brasileira às crianças negras, pode ocasionar consequências negativas, mas obviamente não as determinam, pois aprendemos as estratégias de sobrevivência desde cedo.  

E quando eu digo desde cedo, é desde muito cedo mesmo. As pesquisadoras Abramowicz, Oliveira e Rodrigues constataram que a diferenciação no tratamento das crianças negras já se inicia no berçário, “quando a criança era negra, esta ficava pouquíssimo tempo no colo das professoras, diferentemente da criança branca e ao mesmo tempo, ocorria uma forma pejorativa de chamar estas crianças, cada criança negra era acompanhada de algum apelido”2. O estudo avança e indica que as crianças negras se adaptavam a partir dessa ausência de excesso no cuidado e reorganizavam o seu processo educativo, criando estratégias cognitivas mais sofisticadas e independentes, movidas por esse lugar de não afeição. 

É preciso estar atenta para não contribuir com a trama racista de construir imagens de miséria e violência ligadas às crianças negras, e mais ainda para não cair na armadilha hipócrita da meritocracia. As inquietações aqui traduzidas são rememoradas pelo 12 de outubro, o Dia das Crianças no Brasil, e suas imagens de distribuição de brinquedos, encenadas por uma solidariedade rasa, acrítica e seletiva. 

Esse 12 de outubro, inclusive, foi embalado pela (não) notícia de uma história tão trágica que mais se parece com enredo de um filme infantil de terror. Os pequenos Benjamim e Ythallo, agora encantados, foram assassinados pelas mãos de uma mulher que distribuía doces envenenados3. A notícia não registra nos principais veículos de comunicação do Brasil, e a seletividade midiática e social acerca do terror vivenciado pelas crianças negras desse país se mostra como uma verdadeira bruxa má em quase todas as histórias. 

É que na contramão dos direitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o racismo vai minando de todo lado, desde a ausência do abraço demorado, passando pelas bases educacionais embranquecidas que excluem e silenciam, desembocando na evasão escolar; alcança o trabalho infantil que alimenta o ciclo da desigualdade e reproduz práticas escravagistas negando o direito a infância de crianças negras, que representam 66,3% de todo o trabalho infantil no Brasil4

Às vezes o racismo sequer nos deixa nascer e crescer, segundo a Fiocruz, “crianças negras têm 39% mais risco de morrerem antes de completarem 5 anos”; em 2021, 53% das crianças que morreram com menos de 1 ano eram negras5

Por vezes crescemos, mas morremos ainda assim. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que nos casos de violência letal, 64% das vítimas de até 4 anos são negras e 83% das vítimas de 15 a 19 anos são negras6. A menina Ágatha Félix compõe essa trágica estatística. Segundo o Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 7 anos, apenas na região da cidade do RJ - Rio de Janeiro, mais de 600 crianças foram alvejadas7

O racismo lê as crianças negras como descartáveis, as deixam por sua conta e risco, permite que fiquem à margem de avenidas, circulem por ruas movimentadas, carreguem peso até a exaustão, sejam privadas dos colos maternos que precisam ninar outras para ganhar o pão, as colocam sozinhas em elevadores e as deixam despencar do 9º andar. A família do menino Miguel aguarda enquanto a justiça suspende a ação que determinou o pagamento da indenização8

O racismo torna crianças invisíveis, perdidas pelos dados da fome, da desnutrição e da insegurança alimentar. A UNICEF afirma que o “número de crianças muito abaixo do peso aumentou 54,5% entre março de 2020 e novembro de 2021 (de 1,1% para 1,7%), [...] as crianças negras são as maiores vítimas9

Sem carinho, sem carrinho e sem boneca, os dados desenham as várias faces do genocídio de crianças negras no Brasil. Seguimos calados. É preciso falar. 

Que a lembrança da infância dos pequenos seja mais “a divisão de cada parte cautelosamente. As trancinhas se formando uma a uma. Uma fita de cada cor para arrematar as tranças. Um beijinho quando estava tudo acabado e eu já podia ir brincar. Imagem de ternura sem tamanho. Cheiro de afeto. Gosto de amor10, e menos da pedra pomes lixando a pele preta, em uma automutilação desesperada, na tentativa inocente de se parecer com os seus algozes. 

___________

1 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Aconchego. In: Utopias de nós desenhadas a sós. Brasília: Brado Negro, 2015, fl. 49. 

2 ABRAMOWICZ, Anete; OLIVEIRA, Fabiana; RODRIGUES, Tatiane Cosentino. A criança negra, uma criança negra. In. ABRAMOWICZ, Anete; GOMES, Nilma Lino (Orgs.). Educação e raça: perspectivas políticas, pedagógicas e estéticas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p. 75-96.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui. Disponível aqui

5 Disponível aqui.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui.

10 FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Aconchego. In: Utopias de nós desenhadas a sós. Brasília: Brado Negro, 2015, fl. 49.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.