Olhares Interseccionais

O desafio contemporâneo para a efetivação das políticas afirmativas no sistema de Justiça: A problemática das bancas de heteroidentificação

A importância das ações afirmativas e o papel das bancas de heteroidentificação na coibição de fraudes raciais, reforçando a necessidade de pluralidade e equidade nesse contexto.

8/10/2024

O sistema de justiça enquanto espaço de poder e a sua incapacidade de lidar satisfatoriamente com os problemas sociais modernos são analisados na ordem do dia, e uma crise deste sistema se anuncia, sobretudo em razão da sua inerente seletividade, atrelada a hegemonia racial e de gênero na composição dos seus quadros, eis que hoje majoritariamente brancos e masculinos.

Diante dos efeitos nocivos desta hegemonia e restrição na ocupação destes espaços, a discussão sobre a presença de negros e negras no Poder Judiciário vem sendo objeto de maior atenção com o advento de normativas como o Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10) e do estabelecimento de reserva de vagas em concursos promovidos pelo Poder Executivo (lei 12.990/14). A promoção de ações afirmativas é, nesse contexto, instrumento de promoção de justiça social, combatendo desigualdades e discriminações com raízes históricas no Brasil.

De acordo com art. 2°, II, da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da ONU, ratificada pelo Brasil no ano de 1968, ações afirmativas são “(...) medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos do homem e das liberdades fundamentais”.

Fundamental, portanto, para constatação da efetividade das ações afirmativas, analisarmos os efeitos dessas no acesso ao ensino superior pela população negra, bem como os índices de ocupação no sistema de justiça.

Conforme dados do Censo da Educação Superior (2022), o número de ingressos na educação superior federal por meio de ações afirmativas aumentou 167% em dez anos. O salto se deve, em sua maior parte, à lei de cotas promulgada em 2012. Naquele ano, 40.661 alunos ingressaram em cursos de graduação em virtude de políticas dessa natureza. Já o Censo da Educação Superior 2022, realizado pelo Inep - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, revela que 108.616 estudantes usufruíram das cotas somente no último ano.1

Já nas instituições do sistema de justiça, os avanços vêm com maior lentidão.  De acordo com o Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, elaborado pelo CNJ em 2023, o percentual de juízes que se autointitulam pretos e pardos é de 14,5%, sendo que dos magistrados ativos, apenas 0,5% foram aprovados por meio das cotas étnicas-raciais. Dos que tomaram posse a partir de 2016 (após a entrada em vigor da Resolução CNJ 203/15), 3,5% ingressaram por cota.2

Os relatórios do perfil étnico-racial do Ministério Público brasileiro (2023), da pesquisa nacional da defensoria pública (2022), e do 1º estudo demográfico da advocacia brasileira (Perfil ADV) (2024) de igual forma constatam a desigualdade racial que persiste na ocupação desses espaços e a manutenção da hegemonia das pessoas brancas, em desproporção com a composição étnico-racial da sociedade brasileira.

Além do mais, contemporaneamente, a luta por igualdade material no sistema de justiça ainda deve superar mais um desafio advindo da evolução das políticas afirmativas na sociedade brasileira: a coibição das fraudes da autodeclaração étnico-racial nos processos seletivos para ingresso no ensino superior e acesso às carreiras do sistema de justiça. Neste sentido, a instituição de bancas de heteroidentificação como mecanismo complementar de aferição da coerência das autodeclarações de raça apresentadas é fundamental para que se constate a efetividade das ações afirmativas e se coíbam as fraudes nas autodeclarações étnico-raciais.

A banca de heteroidentificação é um procedimento complementar à autodeclaração, que consiste na percepção social de outras pessoas sobre a autoidentificação étnico-racial, através de uma análise dos elementos fenotípicos da pessoa submetida à banca, com o fito de analisar a conformidade entre a autodeclaração étnico-racial e a percepção social.

O CNJ já instituiu a obrigatoriedade das comissões de heteroidentificação, formadas necessariamente por especialistas em questões raciais e direito da antidiscriminação para os concursos públicos do Poder Judiciário, a fim de evitar fraudes e a utilização indevida da cota racial, através das resoluções 457/22 e 541/23 do CNJ.

No Ministério Público, o CNMP - Conselho Nacional do Ministério Público aprovou a resolução 170 em 2017, dispondo sobre a reserva aos negros do mínimo de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos do CNMP e do Ministério Público brasileiro, e legitimando a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação.

Na Defensoria Pública, 24 estados brasileiros já adotam o procedimento de heteroidentificação racial nos seus processos seletivos, conforme os dados do mapa das ações afirmativas e implantação nas Defensorias Públicas do Brasil: Perfil de cotas e de banca de heteroidentificação racial (2022).

E por fim, mas não menos importante, na OAB - Ordem dos Advogados do Brasil, o provimento 222/23 do Conselho Federal da OAB, já traz também a previsão de criação de uma subcomissão eleitoral de heteroidentificação.

Pluralizar as vozes por equidade e diversidade no sistema de justiça implica no fortalecimento do sistema democrático e na redução dos efeitos de um racismo institucionalizado que prejudica o exercício da cidadania plena das pessoas negras no Brasil, distanciando-lhes de uma construção de país verdadeiramente democrático.

Assim sendo, é fundamental que possamos seguir com o fortalecimento das ações afirmativas através das políticas de inclusão e os instrumentos voltados a concretizar a efetivação dessas políticas no sistema de justiça brasileiro, coibindo a afroconveniência, a ignorância deliberada no que tange à autodeclaração racial, e as tentativas de esvaziamento das políticas afirmativas. Resistir e avançar é preciso, sempre rumo à efetivação da igualdade material.

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1 GOVERNO FEDERAL. Ingresso por cotas aumentou 167% nas universidades.

Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/censo-da-educacao-superior/ingresso-por-cotas-aumentou-167-nas-universidades

2 AGENCIA CNJ NOTÍCIAS. Com apenas 1,7% de juízes e juízas pretos, equidade racial segue distante na Justiça brasileira. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/com-apenas-17-de-juizes-e-juizas-pretos-equidade-racial-segue-distante-na-justica-brasileira/

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.