Janeiro de 1868, delegacia de polícia da capital paulista. Ali compareceu Vitor Augusto Monteiro Salgado. Em sua companhia, três pessoas escravizadas. Salgado os trazia de Mogi das Cruzes e pretendia vendê-los na Corte do Império. Para isso, levou à delegacia uma procuração passada pelo proprietário dos escravizados, o tenente coronel Antônio Mendes da Costa. O viajante solicitou na repartição um passaporte que garantisse sua ida ao Rio de Janeiro sem qualquer embaraço. A resposta que teve, porém, foi outra…
Salgado foi atendido por um jovem funcionário negro. Após analisar os documentos apresentados pelo viajante, o escrivão – função denominada na época de amanuense – negou a liberação do passaporte e reteve um dos escravizados. Alegou que precisava o entregar pessoalmente ao delegado de polícia, Dr. Furtado de Mendonça. A apresentação à autoridade foi feita de maneira formal, por escrito, em documento no qual o funcionário argumentou que, dada a idade do escravizado, 28 anos, e levando em consideração ser natural da África, como reconhecido pelo próprio senhor, só poderia ter vindo ao Brasil por meio do tráfico intercontinental de escravizados e após o ano de 1831.
De acordo com o raciocínio do escrivão, o jovem negro era pessoa livre, pois sua entrada no Brasil decorreu de tráfico ilegal, proibido pela lei do império de 7/11/31. A autoridade policial confirmou a recusa do passaporte para o suposto escravizado, recolhendo-o à cadeia pública. Após isso, foi instaurado procedimento de reconhecimento de sua liberdade. O resultado desse procedimento é, no entanto, desconhecido.
O jovem funcionário público era Luíz Gonzaga Pinto da Gama, que viria a ser mais conhecido apenas como Luiz Gama. Na época dos fatos aqui narrados, exercia ele diferentes tarefas na delegacia de polícia de São Paulo, capital da província de mesmo nome. Sua proximidade com o delegado Furtado de Mendonça, que admirava o empenho e a erudição do jovem escrivão, possibilitou o acesso àquela função e, mais do que isso, permitiu que os questionamentos de Gama à escravidão fossem de alguma forma considerados pela polícia paulista.
Gama nasceu na Bahia, em 1830. Era filho de Luíza Mahin, mulher negra e africana livre que participou ativamente do levante dos Malês, insurreição de escravizados da etnia nagô ocorrida na capital baiana, em janeiro de 1835. Seu pai era um fidalgo português que, aproveitando-se da confiança do filho, criança negra, vendeu-o ilicitamente, já que era nascido livre. Aos oito anos aproximadamente, Gama foi parar nas mãos de um comerciante que estava a caminho do Rio de Janeiro.
Como negro ilegalmente escravizado, Gama encontrou diferentes senhores e se deslocou bastante pelo império, indo por fim trabalhar em São Paulo. Sua ocupação como escravizado de ganho e doméstico e sua postura autodidata lhes possibilitaram alcançar certa instrução. Aos dezoito anos, afrontou seu senhor, declarando ser livre “desde o nascimento” e se evadindo. Não há notícias de que aquele senhor tenha questionado judicialmente a liberdade de Gama ou que tenha colocado capitães do mato a sua procura.
Com a conquista da liberdade, Luiz Gama investiu ainda mais em seus estudos. Passou a frequentar a imprensa, os clubes, o teatro e a própria academia, sendo conhecido no meio aristocrático, sobretudo por sua erudição. No entanto, por ser negro e de origem não aristocrática, teve negado o acesso a diferentes espaços. Nunca pode concorrer a cargos políticos ou alcançar o diploma de bacharel.
Mesmo sabendo que sua negritude era forte elemento de discriminação em sociedade, Gama nunca a negou. Jamais buscou se passar por “mulato”, ainda que filho de pai europeu e branco. Para a historiadora Elciene Azevedo, a afirmação de sua negritude foi uma convicção construída a partir da experiência como pessoa escravizada.
Os obstáculos ao acesso à faculdade de direito não impediram Gama de alcançar uma base jurídica bastante consistente. A inserção e trânsito do personagem em diferentes repartições públicas, mesclados com seu autodidatismo, o levou ainda jovem a atuar em processos judiciais. Aos poucos foi conseguindo autorizações de juízes e tribunais do império para atuar como se advogado fosse. Exercia o ofício na condição de rábula, ou seja, de prático não diplomado.
No Judiciário, Luiz Gama elegeu o combate à escravidão e à violência contra homens e mulheres escravizados como principal bandeira. Fez isso a partir do que a socióloga Ângela Alonso denominou de “esquema interpretativo do direito”, que mesclava o ativismo político e emancipatório com o uso das formas jurídicas institucionalizadas naquele contexto.
Como advogado, Gama transitou entre os extremos de um discurso radical, que apontava para a implosão das normas e da burocracia, e de uma postura legalista, que reconhecia a validade das leis e se aproveitava de suas brechas. Construiu um viés pragmático focado na reinterpretação das normas então existentes, as quais, para o advogado, possibilitavam a defesa da ilegalidade da escravidão em casos específicos. A estratégia não era em tudo inovadora. Há registros de sua utilização anteriormente na Espanha, na Inglaterra e mesmo no Brasil, como no caso do jurista e político Antônio Pereira Rebouças.
A “nova legalidade” desejada por Gama seria alcançada ao se forçar, caso a caso, uma politização do debate em torno da legitimidade da escravidão. O tensionamento levava à reinterpretação das leis, aproveitando cada fissura jurídica que justificasse o direito à liberdade de pessoas escravizadas. Mais especificamente, Gama atuava expondo ambiguidades e lacunas das normas, ou seja, colocava a legislação escravista contra si mesma.
É possível citar exemplos da estratégia desenvolvida por ele. Usou o habeas corpus como ação voltada à liberdade, justificando-a no fato de o art. 179/24 proteger uma séria de direitos dos cidadãos, o que, para Gama, abolia açoites, marcas de ferro quente e outras formas de violência equiparáveis à tortura. Construiu uma rede de médicos abolicionistas, com os quais conseguia laudos de doenças ou sevícias, amparando processos judiciais de libertação. Chamava avaliadores de preços de escravizados, por vezes conseguindo atribuir a eles valor inferior ao de mercado, facilitando assim a alforria. Trouxe abolicionistas para depor em processos de libertação, buscando politizar e publicizar o caso. Defendeu a legalidade do assassinato de senhores por escravizados com base na legítima defesa, que, para Gama, seria reação aceitável à violência do estado de escravidão.
No entanto, a principal tática lançada por Luiz Gama foi a retratada no início deste texto. Questionou veementemente o não cumprimento da lei de 1831 que tornou ilegal o tráfico internacional de escravizados. Defendeu que, após 7/11 daquele ano, toda e qualquer pessoa que ingressasse forçadamente no Brasil, vindo da África, não poderia ter a condição de escravizado. Eram os “africanos livres”.
A partir desse argumento, Gama confrontou o considerável esforço da Corte, do Parlamento e do Judiciário em afastar a eficácia da proibição do tráfico. Pediu a anulação de inúmeros títulos de propriedade registrados com base no que ele entendia como burla à lei de 1831. Perdeu vários desses casos. Em contrapartida, conseguiu a libertação de mais de uma centena de pessoas ilegalmente escravizadas.