Olhares Interseccionais

Queimadas e desmatamento na Amazônia: Quem se importa com as populações vulneráveis que nela habitam?

A Amazônia enfrenta queimadas e desmatamento, afetando gravemente a qualidade de vida e saúde das populações locais. Michel Foucault e Achille Mbembe discutem como o biopoder e a necropolítica exacerbam essas desigualdades.

2/9/2024

A situação está nos noticiários1, mas também diante dos nossos olhos e narizes. A Amazônia queima e a fumaça chega a outras regiões do país.2 Nos grandes centros urbanos as pessoas sofrem com o aumento da poluição, doenças respiratórias, ou como mais recentemente aconteceu em Ribeirão Preto-SP3, com fechamento de escolas por conta da invasão da fuligem da fumaça. Mas como sofrem realmente as populações mais vulneráveis que estão no epicentro das queimadas e do desmatamento?

Segundo Michel Foucault, o biopoder é um instrumento de regulação das populações, instituído a partir da premissa “fazer viver e deixar morrer”. Isto é, a partir do controle institucional sobre as massas são criadas e aprofundadas vulnerabilidades que resultarão na segregação de comunidades sob o argumento de proteção da sociedade como um todo. De modo que, exercido a partir da biopolítica, constitui uma microfísica de poder que integra o próprio tecido social (Silva e Gomes, 2021).4

Os mesmos autores, destacam que a teoria foucaultiana se mostra insuficiente para explicar a questão a partir das periferias do capitalismo, na medida em que contempla um olhar eurocêntrico. Afinal, no Sul global, especialmente naqueles países que conservam a memória de colônias, aguça-se ainda mais a perspectiva do indivíduo descartável. Assim, para esses Estados a regra é “fazer viver e fazer morrer”, conforme a necropolítica de Achille Mbembe.

Também defendem que, se há uma relação direta entre o extermínio de determinadas comunidades, como as negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e pobres e partir das ações e omissões de um determinado Estado, as injustiças ambientais nas periferias do capitalismo também está diretamente relacionada com essa postura de poder. De modo que, as vulnerabilidades humanas são fatores que permeiam também as vulnerabilidades ambientais. Isso porque tratam-se de indivíduos não incorporados pelo sistema, de forma que se tornam pessoas pobres – sem condições de sustentarem padrões de dignidade na realidade do capital (Silva e Gomes, 2021).5

Então, a essa população, que arde entre queimadas e desmatamento na Amazônia, são negados bens da vida mais basilares e estatuídos na Constituição Federal de 1988, como os direitos fundamentais: À vida, cidadania, moradia, trabalho, saúde, educação, meio ambiente, acesso à justiça, entre tantos outros. A elas estão destinadas, desigualmente, a oportunidade de viver ou morrer, como bem conceituou Achille Mbembe ao tratar da necropolítica.         

A carência desses direitos - atrelada à ocupação segregada do espaço ambiental - é um dos exemplos da omissão do Estado aos grupos subalternos. Afinal, quando o Estado não atua em benefício isonômico da cidadania ambiental, interpretada aqui como carência de direitos sociais ou de justiça social para todos os grupos étnicos, ele os priva do acesso à vida e outros direitos e promove a morte. Assim, os grupos eliminados (negros, indígenas e ribeirinhos) são vítimas da gestão de um Estado que atua sob a racionalidade biopolítica.

O racismo ambiental, na qualidade de privação étnico-espacial de cidadania, é considerada uma extensão da biopolítica. É cediço que, num primeiro momento, a utilização do termo racismo ambiental foi cunhado para denunciar o exercício do poder na eliminação das comunidades pretas pela espacialidade. Mas, outros casos, que acontecem no país, especialmente na Amazônia, também podem ser considerados racismo ambiental, ainda que atinjam outras camadas da população, não exclusivamente  negras, na medida em que são atravessadas por outras vulnerabilidades como é o caso das disputas fundiárias entre fazendeiros e indígenas, dos conflitos em torno da demarcação de terras indígenas e quilombolas e também pelas queimadas e  desmatamentos que atingem de maneira cruel e desumana as populações tradicionais (povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos) daquela região do país.

Afinal, o racismo ambiental é um conceito que denuncia a desigualdade na distribuição dos impactos ambientais, que afetam de maneira desproporcional as populações marginalizadas e minorias étnicas, sendo, portanto, uma intersecção complexa entre injustiça social e degradação da natureza, o que acontece na Amazônia nada mais é do que racismo ambiental, que se manifesta na falta de fornecimento de água potável, energia elétrica, saneamento básico, no despejo de resíduos tóxicos em áreas vulneráveis, como é o caso do garimpo, na grilagem e na exploração de terras pertencentes a povos tradicionais, atividades essas que reforçam a exclusão social e intensificam a degradação do meio ambiente, tornando essas comunidades as principais vítimas das catástrofes climáticas.

É necessário que o racismo ambiental, exposto sob o imperativo da negação de cidadania e das práticas biopolíticas, seja enfrentado, caso contrário tais grupos serão exterminados.

Visando enfrentar tal problemática, recentemente, o CNJ promoveu, no período de 17 a 21/6/24, a 2ª edição do Programa Justiça Itinerante Cooperativa na Amazônia Legal, em 2 municípios do sul do Amazonas – Humaitá e Lábria -, que contou com a participação de mais de 50 instituições públicas parceiras, tribunais, órgãos dos governos federal, estadual e municipais, ministério público, defensorias públicas, autarquias federais, OAB e cartórios, levando aos habitantes desses dois municípios e de cidades vizinhas atendimentos nas áreas de documentação civil, fundiária, ambiental, previdenciária, trabalhista, infância e juventude e indígena, do qual tive a oportunidade de participar, enquanto Juíza Auxiliar da Presidência do CNJ.

As duas cidades foram escolhidas por questões estratégias, além da distância da capital do Estado, Manaus, ficando mais perto de Porto Velho, no Estado de Rondônia, mas também por fazerem parte do arco do desmatamento, vicejando na região conflitos fundiários, agrários e ambientais, acompanhados de outras mazelas como o alto índice de evasão escolar e trabalho infantil em garimpos, além de denúncias de trabalho escravo na região.

O que coincide com dados recentes divulgados pelo Governo Federal (MMA - Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas)6 de que 3 regiões da Amazônia Legal concentram a maior parte dos registros de queimadas dos últimos dias, e que entre elas está a região de Porto Velho-RO e Humaitá-AM, na abrangência da BR 319.

Da mesma forma como outras notícias recentes7, que apontam o ataque de garimpeiros à agentes da PF, durante a operação Prensa, na cidade de Humaitá-AM, onde foram destruídas mais de 200 dragas ao longo do rio Madeira.

Durante a realização desses serviços muitas histórias que se entrelaçaram por pela crueza como a vida se impõe, mas principalmente pela vontade de superar as adversidades, como da indígena Paula*, de 11 anos, com sua filha de poucos meses de vida - vítima de abuso sexual de seu padrasto -, que buscava o benefício do salário maternidade, tratava a filha como uma leoa e não deixava ninguém se aproximar, dos estudantes Joaquim* e Francisco*, que se preparam para o ENEM, que dormiram na fila, para garantir a ficha para tirar a Carteira de Identidade, na manhã seguinte tremiam de fome e medo de não conseguir o atendimento. E tantas outras histórias marcantes8 que somente confirmam a necessidade do Estado se fazer presente para minimizar as ausências de estruturas permanentes na Amazônia Legal.

Ao fim da missão saímos de lá impactados, mexidos, transformados9, com a certeza que para quebrar com o pacto da invisibilidade contra os morríveis e matáveis da Amazônia é medida de urgência, certos de que ações como esta desempenham um papel social e pedagógico – até porque dele sairá um longo relatório sobre a atividade desenvolvida apontando para o futuro -, mas é imprescindível que se faça mais: medidas estruturantes, capazes de enfrentar o barulho ensurdecedor de quem ecoa que o único caminho a seguir é queimar e destruir a floresta, não é!

O que tem mais relevância em dias como estes, porque se ardem os olhos e narinas das populações dos grandes centros urbanos, como estão as vidas desses grupos vulneráveis que dela precisam para viver e sobreviver? Como pode Paula* cuidar com tão afinco de sua filha em meio à fumaça e destruição? Como Joaquim* e Francisco* vão se concentrar e estudar pra obter êxito no Enem e mudarem suas trajetórias de vidas? Precisamos encontrar coletivamente as respostas, pelo bem deles e de toda a humanidade. 

___________

1 Disponível aqui

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 SILVA, Pedro Henrique Moreira e GOMES, Magno Federici. A bio-necropolítica das injustiças ambientais no Brasil. Revista Paradigma, Ribeirão Preto-SP, a. XXVI, v. 30, n. 1, p. 68-92 jan/abr 2021

5 Idem ao item 4.

6 Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

8 Disponível aqui.

9 Disponível aqui

* Nomes fictícios.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.