Olhares Interseccionais

A década internacional de afrodescendentes: ações de enfrentamento ao racismo e a visita da comissão da ONU ao Brasil

O texto também aborda a situação no Brasil, onde a população negra representa 56% da população total e enfrenta desafios significativos, como altas taxas de pobreza, fome e desemprego, além da violência em conflitos agrários e contra comunidades indígenas e quilombolas.

19/8/2024

Em consonância com o calendário aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), foi proclamado o período entre 2015 e 2024 como a Década Internacional de Afrodescendentes, pela resolução 68/237, com o lema “reconhecimento, justiça e desenvolvimento”, importante referência da comunidade internacional à representatividade dos povos e pessoas que possuam raízes originárias em África, que ali residem ou que povoam o mundo inteiro a partir da diáspora africana, cujos direitos humanos precisam ser afirmados, promovidos e protegidos, especialmente diante da histórica discriminação sistêmica e das desigualdades econômicas e sociais decorrentes do legado do tráfico de pessoas, da escravidão e do colonialismo.

Segundo estimativas das Nações Unidas, cerca de 200 milhões de pessoas autoidentificadas como afrodescendentes residam nas Américas, e outros muitos milhões em outras partes do planeta, e nesse cenário da década comemorativa a ONU disponibilizou o site no qual podem ser acessados vários materiais pela comunidade em geral, podendo ser utilizados por instituições públicas e privadas dando visibilidade à abordagem desta importante temática, representando um compromisso importante no enfrentamento ao racismo.

A Década Internacional de Afrodescententes tem os seguintes objetivos estratégicos: a) promover o respeito, proteção e cumprimento de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais das pessoas afrodescendentes, como reconhecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos; b) promover um maior conhecimento e respeito pelo patrimônio diversificado, a cultura e a contribuição de afrodescendentes para o desenvolvimento das sociedades; c) adotar e reforçar os quadros jurídicos nacionais, regionais e internacionais de acordo com a Declaração e Programa de Ação de Durban e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, bem como assegurar a sua plena e efetiva implementação.

No Brasil, conforme dados do Censo do IBGE 2022, a população negra corresponde a 56% da população brasileira, integralizando aproximadamente 113 milhões de pessoas. Nesse cenário, é importante refletirmos e identificarmos que o enfrentamento ao racismo, como instrumento para a concretização do direito à igualdade e à não-discriminação, é fundamental para o desenvolvimento econômico e social em nosso país.

A título de exemplo, conforme dados da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, em 2022 o Brasil tinha 67,8 milhões de pessoas em situação de pobreza, destas 71% são pessoas negras (pretas e pardas). 40% dos negros vivem em situação de pobreza (45 milhões de pessoas) e 7,7% dos negros em situação de extrema pobreza (8,7 milhões); cerca de 1 a cada 5 famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pretas ou pardas sofrem com fome no Brasil, proporção que cai para 1 a cada 10 naquelas comandadas por pessoas autodeclaradas brancas. Quanto aos indicadores de empregabilidade, os negros correspondem a mais da metade dos desocupados (65,1%), e a taxa de desemprego entre a população branca é de 5,9%, ao passo que atinge 8,9% entre pretos e 8,5% entre pardos.

Para além das recomendações e exortações da Resolução 68/237, proclamatória da Década Internacional de Afrodescendentes, a ONU designou a especialista Ashwini K.P. (Índia) como a Relatora Especial sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, que veio ao Brasil em missão oficial no período de 05 a 16 de agosto de 2024 para avaliar o progresso e os desafios para alcançar a igualdade racial e eliminar a discriminação racial, realizando reuniões em seis cidades brasileiras (Brasília, Salvador, São Luís, São Paulo, Rio de Janeiro e Florianópolis), em diálogos com a participação de autoridades federais e estaduais, inclusive do Sistema de Justiça, representantes de grupos étnicos e raciais, organizações da sociedade civil e acadêmicos.

Tive a oportunidade de participar da reunião com a Relatora Ashwini K. P., realizada em São Luís/MA, no dia 10 de agosto de 2024, como representante do Poder Judiciário do Maranhão, na companhia da juíza Elaile Silva Carvalho1, evento coordenado pelo Procurador-chefe da Procuradoria Regional do MPF no Maranhão, Alexandre Silva Soares, e juntamente com representantes do Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública da União e Defensoria Pública Estadual, momento histórico para as instituições do Sistema de Justiça do Maranhão, que possui a 3ª maior população negra, a 2ª maior população quilombola e a 8ª população indígena do Brasil.

Na ocasião, foram apresentadas as ações institucionais voltadas ao enfrentamento ao racismo e as boas práticas adotadas, inclusive com ações interinstitucionais bem sucedidas, evidenciando caminhos para o combate ao racismo estrutural e institucional. Os representantes do Sistema de Justiça também manifestaram a preocupação das instituições com os índices de violência nos conflitos agrários, contra lideranças indígenas, quilombolas e de religiões de matriz africana, e a exploração de mão-de-obra em condições análogas à escravidão, sendo o Maranhão um dos maiores exportadores de pessoas que são submetidas a esta forma moderna de escravidão no Brasil.

Ao final da missão oficial, a Relatora Especial apresentou suas conclusões preliminares, em entrevista coletiva, manifestando preocupação com as formas contemporâneas de manifestação do racismo sistêmico no Brasil, a baixa representação política dos grupos étnicos vulnerabilizados, os altos índices de violência e letalidade em face da população negra, indígena e quilombola e as discriminações interseccionais com base em deficiência, gênero, orientação sexual e em face de pessoas migrantes e refugiadas. A relatora destacou, também, boas práticas que foram catalogadas, entre elas programas de ações afirmativas em instituições de ensino superior e outras instituições públicas, e iniciativas para garantir o reconhecimento cultural e a memória sobre as experiências coletivas de pessoas de grupos raciais e étnicos marginalizados.

A íntegra da apresentação está disponível na página do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e os resultados finais serão apresentados na 59ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU em junho de 2025.

Por fim, importante registrar que esta visita oficial da ONU converge para o calendário da UNESCO, com o Dia Internacional de Memória do Tráfico de Escravos e sua Abolição, comemorado em 23 de agosto, em referência à noite de 22 para 23 de agosto de 1791, data em que negros escravizados e ex-escravizados de São Domingos, então colônia francesa, atual Haiti, se revoltaram contra o sistema de escravidão e de desigualdades.

Os estudiosos deste evento histórico afirmam que os líderes e participantes do levante foram fortemente influenciados pelas ideias iluministas da Revolução Francesa, em que se afirmava a igualdade entre os homens, e assim se impulsionaram a lutar pela liberdade e por seus direitos, a partir das reflexões decorrentes da manifesta contradição entre aquilo que os franceses pregavam na Europa e o que aplicavam naquela colônia.

Em decorrência desse movimento foi proclamada a independência haitiana em 1804, sendo o primeiro território das Américas a abolir a escravidão, um marco histórico na afirmação dos Direitos Humanos.

Portanto, reforça-se a necessidade de convergência dos compromissos e esforços institucionais, em uma postura assertiva e colaborativa para a implementação e efetividade de políticas públicas voltadas aos grupos étnicos vulnerabilizados e historicamente discriminados, com uma perspectiva interseccional, a partir da construção coletiva e dialogada que atenda às diretrizes dos tratados internacionais, em especial, a partir da escuta ativa e de protocolos que observem a consulta livre, prévia e informada preconizada pela Convenção 169 da OIT.

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1 Matéria do evento disponível aqui.

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Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

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Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

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Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.