Olhares Interseccionais

O modelo social de abordagem da deficiência e o mito da inclusão

O modelo social de deficiência transfere a responsabilidade da deficiência da pessoa para a sociedade, que precisa se adaptar para ser inclusiva. Contudo, na prática, a inclusão ainda enfrenta desafios, como o capacitismo, que perpetua a exclusão e a desigualdade social.

5/8/2024

Não tenho dúvidas que vivemos hoje um marco civilizatório quando tratamos de direitos das pessoas com deficiência, graças a construção de um modelo social de abordagem da deficiência, baseado em valores de direitos humanos como a dignidade, autonomia, solidariedade, igualdade e não-discriminação.

E o ponto da viragem normativa na abordagem da deficiência, de um modelo médico para um modelo social, tem seu ápice durante a Convenção Internacional de Nova York (2006), que promulgou a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo facultativo. A Convenção foi incorporada ao sistema jurídico brasileiro através do decreto 186/08, e ratificada pelo decreto presidencial 6.949/09. A norma tem nivelamento hierárquico de normas constitucionais, por força do procedimento legislativo descrito no § 3º do art. 5º da Constituição.

Diferentemente do modelo médico, que abordava a deficiência como uma tragédia pessoal que precisava de tratamento e cura, um “defeito” que precisava ser “normalizado” para ser reintegrado a sociedade; o modelo social desloca a deficiência para uma questão eminentemente social, eis que a deficiência passa a ser a interação entre os impedimentos naturais oriundos da própria deficiência, com as diversas barreiras sociais existentes.

Logo, a mudança na lógica do sistema passou a exigir uma readequação dos sistemas sociais, que devem ser corrigidos para incluir a diversidade humana a partir das suas diferenças. Agora é a sociedade que precisa de reabilitação e cura, em razão da sua inadequação para incluir toda pluralidade humana.

Denota-se o impacto, pelo menos formal, do modelo social da deficiência no direito brasileiro, especialmente a partir da lei brasileira de inclusão (lei 13.146/15). A lei incorporou os princípios de direitos humanos das pessoas com deficiência em um estatuto próprio, reforçando a ideia de que a deficiência é um desvio social, econômico, histórico e cultural, e a sua correção perpassa por uma sociedade mais acessível e inclusiva.

Mas a final, o que é inclusão? Como descreve Romeu Sassaki1, inclusão “é o processo pelo qual os sistemas sociais comuns são tornados adequados para toda a diversidade humana, composta por etnia, raça, língua, nacionalidade, gênero, orientação sexual, deficiência e outros atributos, com participação das próprias pessoas na formulação e execução dessas adequações”. A inclusão é a maior expressão do amadurecimento dos direitos fundamentais em uma sociedade democrática.

Por outro lado, na prática, o modelo social de inclusão se tornou um mito, uma narrativa simbólica de controle social, quase que inalcançável e demagógica, legitimando o discurso de uma sociedade inclusiva, sem considerar a complexidade dos conflitos sociais existentes, os fatores biológicos individuais, as barreiras estruturais e o capacitismo (preconceito contra as pessoas com deficiência).

No entanto, assim como o racismo e o sexismo, o capacitismo é estrutural; resultando em uma forma de opressão sistemática de invisibilidade e exclusão social que percorreu vários estágios na história humana. A perpetuação do capacitismo potencializa vulnerabilidades, gera pobreza, reduz o acesso à justiça, à educação, à saúde, à cultura, ao mercado de trabalho, ao serviço público, a participação política; aumentando a violência, a segregação e a exclusão.

Ressalto que os efeitos dessa exclusão são alarmantes, e se tornam aparantes quando analisamos alguns dados sociais sobre pessoas com deficiência. Segundo o IBGE, o Brasil tem aproximadamente 18,6 milhões de pessoas com deficiência, cerca de 9% da população. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, nos aponta que o analfabetismo entre as pessoas com deficiência é de 19,5% e que 63% não completam a educação básica. Apenas 7% conseguem acesso às universidades. A falta de inclusão e acessibilidade no sistema educacional é um dos principais fatores que elevam a evasão escolar e dificultam o acesso à renda e ao mercado de trabalho. Esse ciclo vicioso perpetua a desigualdade social e aprofunda a pobreza entre as pessoas com deficiência.

Analisando o Atlas da Violência de 2024, podemos observar que as pessoas com deficiência estão mais suscetíveis em sofrer violência, especialmente quando tratamos o tema a partir da interseccionalidade (quando dois ou mais marcadores sociais de opressão, ou marginalização social “definem” uma pessoa) entre gênero, raça e deficiência. Mulheres com deficiência se encontram em situação de maior vulnerabilidade e sofrem maior violação de direitos (57,2 vítimas para cada 10 mil pessoas). É alarmante o número de violência sexual contra pessoas com deficiência intelectual, pois 1, a cada 3 pessoas, sofrem abuso sexual na idade adulta.

Além disso, quando tratamos de interseccionalidade entre deficiência e raça, as desigualdades se tornam ainda mais graves, pois esses fatores conjugados robustecem a vulnerabilidade, especialmente de mulheres negras com deficiência (51,6% das vítimas de violência). Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio apontam que 54% das pessoas com deficiência se declararam negras (pretos e pardos), sendo que somente 0,6% acessam o ensino superior e 57% se encontram na informalidade no mercado de trabalho.

Em uma simples análise, podemos observar que apesar dos avanços obtidos com o modelo social de abordagem da deficiência, a sua mera existência formal não é suficiente para construir uma sociedade justa e igualitária. A inclusão é um processo complexo que desafia a própria estrutura dos sistemas sociais, demandando uma mudança de consciência coletiva e uma transformação concreta nas relações sociais.

Portanto, a construção de políticas públicas eficientes são essenciais ao combate às relações sociais de subordinação, as distorções e ao desequilíbrio social, especialmente por meio de ações afirmativas que equalizem a igualdade de oportunidade, a partir do respeito as diferenças e dos valores de direitos humanos. Caso contrário, a inclusão continuará sendo um mito, que, retroalimentado pela corponormatividade, encobre com névoa a dura realidade social de exclusão.

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1 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: acessibilidade no lazer, trabalho e educação. Revista Nacional de Reabilitação (Reação), São Paulo, Ano XII, mar./abr. 2009, p. 10-16.

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