Olhares Interseccionais

Com que direito?

Com que direito alguém possui de tirar a inocência de uma criança negra, que sequer compreendeu sua raça tampouco sua sexualidade?

22/7/2024

"Com todo respeito
Nós não queremos mais direitos
Nós não queremos privilégios
Nós queremos viver em paz
Nós queremos andar na rua
Sem ter medo de levar uma
Lampadada na cara
De ser agredida
De ser estuprada
De ser violentada
Nós queremos viver em paz
Nossos amores seguirão firme e forte
Nós seguiremos de pé
(...)
Respeite os nossos passos
Respeite as nossas trajetórias
Que nos trouxeram até aqui
E que queiram vossas excelências ou não
Terão que nos engolir
E nós não permitiremos
Não permitiremos
Jamais
E não tolerarei
Não aceitarei
Jamais
Não nos distrairemos"

Érika Hilton, deputada Federal

Nos dias 17 e 18, a cidade de Natal sediou o "1º Seminário de raça e diversidade: direitos humanos e cidadania", por iniciativa do Tribunal Regional do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Norte, com a presença de grandes ativistas reconhecidas nacionalmente pela luta por direitos humanos, como Rosane Borges, Aza Njeri, Rita Von Hunty, Érika Hilton e tantas outras e outros, cujos nomes não caberiam neste artigo.

Afora a grande emoção de ter participado como painelista, mas, fundamentalmente, como espectadora, se de um lado, correu em mim, entre os olhos marejados, o frenesi de ver tantos rostos e corpos que não costumam ocupar o espaço do maior teatro da cidade.

De outro, doeu-me a alma ouvir tantas histórias de violência profanadas nas ruas, mas, fundamentalmente em ambientes domésticos e institucionais, ao ouvir as histórias de diversas(os) palestrantes.

Na escola. Como ocorreu com o colega, Juiz de direito, homem gay, que relatou que, em sua tenra infância, era apelidado pelos colegas de “galinha preta”.

No trabalho. Como ocorreu no âmbito do Ministério Público Estadual, como expôs uma Promotora de Justiça, mulher lésbica, a sua dor de ter se omitido, ao ouvir os seus pares, desconsiderarem o trabalho de um Procurador do Estado, ao identificá-lo como “gazela” e imitar seus supostos trejeitos ao andar.

No seio familiar. A partir do relato de um Procurador da República, que, ao revelar, aos 24 anos, sua orientação sexual à família, ouviu da mãe que essa era a causa de sua magreza, certamente estaria com HIV.

No supermercado. Quando o mesmo Procurador da República, relatou que, depois de ter sido insultado com seu marido, a agressora incomodou-se em ouvir que era homofóbica, chamou a polícia e ele foi conduzido de camburão até a delegacia, e ainda, teve que esperar três horas para registrar a ocorrência, aguardando a troca de plantão, pois o delegado presente não reconhecia homofobia como crime.

Marcou-me o encontro ouvir os relatos sobre as dores de todas e todos, tanto dos que puderam falar, bem como daqueles que ouviam, em silêncio e entre lágrimas, com que tanto se identificaram, quer por ser esse o retrato da sua vida cotidiana, quer por buscarem em si e na coletividade os valores de uma humanidade denegada.

É chocante que, ainda hoje, em pleno 2024, ainda tenhamos que lidar com as essas dores, com a vergonha que sentimos e com todas essas feridas que nos forjam, em detrimento de se escancarar a vergonha que deveria afligir os nossos detratores, as penalidades que deveriam sofrer e suas consequências.1

Retomo a pergunta inicial para indagar: Com que direito alguém possui de tirar a inocência de uma criança negra, que sequer compreendeu sua raça tampouco sua sexualidade? Com que direito nos ciclos do sistema de justiça se imputa a outro profissional apelidos depreciativos que passam a identificá-lo, em detrimento de sua profissão e competência? Com que direito uma família cristã denega e expulsa uma filha de casa para que viva à própria sorte, por ter orientação sexual ou identidade de gênero que não se amolda ao “padrão heteronormativo”, como aconteceu com a própria deputada federal Érika Hilton, que expulsa de casa, passou a ser explorada sexualmente em sua adolescência para sobreviver?

A resposta é simples: as violências se consumam sob o “direito da lei”, que, a despeito de rechaçar com a mesma truculência as violências impostas aos grupos marginalizados pela raça, pela orientação sexual, pelo gênero e tantos outros marcadores de subalternização criminaliza essas agressões com pena máxima de reclusão de 5 anos, podendo ser majorada até a metade, conforme a gravidade da conduta, mas, na prática, o que isso significa2?

Significa que não custa ser racista, machista, misógino, homofóbico, transfóbico, xenófobo, traduzindo para a linguagem simples: é barato ser criminoso de ódio em nosso País e os números do 18º Anuário da Segurança Pública de 2024 refletem isso.

A despeito da redução dos números gerais, ainda são as pessoas negras que ocupam o percentual de 77,8% das vítimas do crime de homicídio, dados esses que são majorados quando se trata de mortes causadas em decorrência de intervenção policial, em que 82,7% dos mortos são pretos ou pardos, ou seja, um negro tem quase quatro vezes mais chance de ser assassinado pela polícia do que um não negro3.

Nem mesmo quando vestem o distintivo, as pessoas negras são menos vítimas, afinal, 69,7% dos policiais mortos em confronto eram pessoas negras. Negro matando negro, sob “o direito da lei”. O deputado federal Orlando Silva nos chama atenção para essa neurose4 produzida pelo racismo estrutural: “o negro deve ter medo da polícia e também deve ter medo de ser polícia!5”.

Em relação ao crime de racismo, observou-se o incremento de 77,9% das ocorrências, que saltaram de 5.100 registros em 2022 para 11.610 em 2023. Quanto à injúria racial, apesar da diminuição em 14%, ainda representaram 13.897 casos ao ano.

Os crimes de ódio contra a população LGBTQIAPN+ aumentaram. A despeito de a decisão do Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, equiparar a homofobia e a transfobia ao crime de racismo, houve o aumento de 87,9% de registros, o que representou 2.090 casos novos no país, enquanto os homicídios contra esse grupo tombou 214 pessoas, 41,7% a mais que no ano de 2022.

Esses números todos escancaram a “persistência da naturalização de cidadanias apartadas da dignidade humana6”, afinal, nada contém a violência contra corpos negros, mulheres, LGBTQIAPN+, e outros ditos dissidentes? Ouso dizer “dissidente, não!”.

Trata-se de corpos coincidentes, afinal, ser humano é uma abstração que deve ter como parâmetro a si próprio, e não os ditames sociais, que como visto, não podem servir de medida para o corpo, para a alma, para as vivências, pois não tem produzido nada diverso que não a violência, a segregação, o sofrimento e o tombamento. Prefere-se essa última expressão, porque uma ofensa verbal, uma agressão física, uma morte violenta sintetizam um tombamento não de algo individual como um corpo, uma vida, um grupo,  mas sim representa a perda da esperança na humanidade, que nos afasta de uma sociedade de direitos humanos e para humanos direitos.

Quando a deputada federal Érika Hilton braveja a frase “Não tolerarei”, essa máxima merece ser incutida ao acordar em todas as pessoas vitimizadas pelas violências, em sinal de basta e amedrontar o sono de todos os criminosos que circulam por aí. Essa máxima pressupõe não uma ação individual, mas, como ela mesmo diz, uma atuação coletiva de todos os humanos direitos, a fim de que possamos incorporar a inversão de expor o crime e as incongruências de um sistema que não avança com a mesma truculência contra os criminosos de ódio, em vez de se concentrar no sofrimento dos vitimizados, por isso, digamos: NÃO TOLERAREMOS!

__________

1 BENTO, CIDA. Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, p. 23.

2 BRASIL. Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989.Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

3 SILVA, Orlando. Anuário da Segurança Pública: até quando negros e negras terão um alvo no peito? Disponível aqui. Acesso em 15 jul. 2024.

4 GONZALEZ, Lelia. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afrolatinoamericano: ensaios, intervenções e diálogos. Org: Flavia Tios, Marcia Lima. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p.

5 SILVA, Orlando. Anuário da Segurança Pública: até quando negros e negras terão um alvo no peito? Disponível aqui. Acesso em 15 jul. 2024.

6 Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024.Ano 18 – 2024. p.110. Disponível aqui.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.