Olhares Interseccionais

Racismo da invisibilidade

A coluna explora a invisibilidade e exclusão dos indígenas na sociedade brasileira, contrastando com o racismo direcionado a outras minorias. Apesar do reconhecimento constitucional desde 1988, persistem desafios como a negação de assistência básica e cultural, refletindo um dilema entre coexistência e integração forçada.

8/7/2024

Inaugurando nessa coluna, venho com a intenção de ampliar o debate sobre as populações que vivem à margem da sociedade e, por isso, em um espaço carente de política pública e, também, de representatividade social.

Indago aos leitores da coluna: Você é indígena? No seu ciclo de amizade há uma pessoa indígena? Na sua universidade, local de trabalho ou vizinhança, tem algum indígena? Você, ao menos, conhece quem são os indígenas no seu Estado? Onde estão os indígenas brasileiros?

Célia Xakriaba, Deputada Federal (MG), fala a respeito do “racismo da ausência ou da solidão”, pois, diferente do racismo direcionado a pessoa negra (que é visto e, por isso, causa o incômodo por estar presente em um lugar), a pessoa indígena é completamente ignorada e excluída da sociedade, invisibilizada.

Isso acontece de uma forma pouco sútil e muito direta. Vejamos. Se o indígena está convivendo na sociedade e usufrui de veículo e celular, sua identidade é questionada: “Índio com IPhone?” - nessa perspectiva limitante, esse indígena perde sua identidade ao se envolver na sociedade não indígena, esse indígena simplesmente evapora. Por sua vez, se o indígena está aldeado, na visão desse racismo, lá ele deve viver e nos moldes que se vivia antes da chegada dos colonizadores, sem acesso à educação, tecnologias, saúde e saneamento básico, mesmo inexistindo as mesmas condições de clima, espaço e vegetação que existiam há 500 anos. 

É importante frisar que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 foram abandonadas as percepções assimilacionistas e integracionistas, que buscavam a gradual absorção dos indígenas pela sociedade posta, presumindo que o indígena teria a existência transitória e destinada à extinção. Nesse contexto, a partir da Carta Magna de 1988, os povos indígenas, com suas organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições passaram a ser reconhecidos e respeitados, tendo a observância à diversidade cultural como um princípio fundamental.

Em contrapartida ao mencionado princípio constitucional, infelizmente, o Estado Brasileiro persiste em negar a existência da população indígena, persiste em negar assistência básica aos indígenas que estão dentro das terras demarcadas, persistem em não escutar os apelos dos indígenas que estão envolvidos na sociedade não indígena, persistem em não reconhecer a multiplicidade de culturas e tradições das diversas etnias indígenas brasileiras e, o mais inexplicável, persistem em negar a possibilidade de coexistência entre a cultura indígena e não indígena, sem necessária integração e extinção de uma ou outra.

Contudo, nesse contexto de invisibilidade perene, há um movimento de resistência e persistência protagonizado pelos próprios indígenas, que se organizam e procuram espaço de diálogo com os membros dos Poderes. 

Foi exatamente nesse movimento feito pelos indígenas do Estado do Maranhão que houve o despertar do Poder Judiciário local, pois, mesmo existindo 57.214 pessoas que se auto identificam como indígenas no Estado do Maranhão (4,3% do total da população), sendo o oitavo maior contingente de pessoas indígenas do país (conforme informativo do IBGE do ano de 2022), o Poder Judiciário local, até o ano de 2022, desconhecia ou ignorava a existência dessa parcela da população e não tinha nenhuma ação específica direcionada aos indígenas locais. 

Por conseguinte, a partir da procura dos próprios indígenas, houve uma articulação interna (realizada por meio do Comitê de Diversidade do TJ/MA), o que culminou na implementação do programa “Escuta ativa dos povos indígenas”, cujo objetivo é identificar as principais demandas da população indígena no Estado, suas especificidades e, a partir delas, reunir esforços para uma prestação jurisdicional antidiscriminatória e inclusiva, que atenda à complexidade ínsita a essas demandas, aproximando o Poder Judiciário da população indígena e promovendo a desburocratização do acesso à justiça, mediante uma prestação marcada pela qualidade e celeridade. Tamanho o impacto do referido programa, que ele foi contemplado com o prêmio “Responsabilidade Social do Poder Judiciário e Promoção da Dignidade”, edição 2023.

O programa “Escuta ativa dos povos indígenas”, tem a pretensão de diminuir os obstáculos enfrentados pelos indígenas ao acessar o Judiciário local, bem como realizar atendimento direcionado especificamente aos indígenas, com respeito a sua cultura, língua e tradições, levando juízes, ladeados de outros atores da justiça, como defensores públicos e promotores de justiça, e, também, outros órgãos públicos estaduais e municipais, juntamente com a FUNAI, para uma grande força tarefa concentrada no atendimento exclusivo aos indígenas, concedendo-lhes a documentação básica, o acesso a cadastros assistenciais e a resolução de demandas judiciais (cíveis em geral, registro público e família). 

A escassez de política pública para a comunidade indígena é de tamanha gravidade que foi possível encontrar indígenas com 90 anos de idade e sem qualquer documento (sem certidão de nascimento), ou seja, sem acesso a documentação básica, esses indígenas sequer são números considerados para o direcionamento de políticas públicas pelo Estado.

O programa “Escuta ativa dos povos indígenas” já atendeu mais de dois mil indígenas no Maranhão, das etnias Guajajara, Krikati, Gavião, Kanela e Ka’apor. Mas eu posso ressaltar que a realização mais importante desse programa não é a quantidade de serviços que foram direcionados aos indígenas, mas sim o combate, no TJ/MA, do “racismo da ausência”, do racismo da invisibilidade, pois a população indígena passou a ser vista no Judiciário Maranhense, que passou a enxergar a grande dívida que tem e minimizar os impactos dessa escassez de justiça para a população indígena local. 

Por fim, despeço-me expressando que tenho esperança de que haja mais inclusão social, que você, caro leitor e querida leitora, tenha, um dia, uma pessoa indígena para relembrar “os tempos da faculdade” ou que “encontrou no local de trabalho hoje cedo” ou que “conversou durante a subida no elevador do prédio” ou que seja um médico, uma médica, advogado, advogada ou dentista. Ou, em outra perspectiva, que o indígena aldeado tenha acesso a uma qualidade de vida, conforme sua cultura e tradição. E, por consequência, nessa sociedade ora idealizada, a pessoa indígena tornar-se-á visível e receberá o respeito devido a todo ser humano.

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Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.