Olhares Interseccionais

"Dos filhos deste solo, és mães gentil": O PL 1904/24 e a urgência dos homens em votarem no escárnio ao corpo das mulheres

Neste artigo, são abordados os impactos do PL 1904/24, conhecido como PL do Aborto, que propõe a equiparação do aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, e suas implicações para os direitos reprodutivos das mulheres no Brasil, com ênfase nas mulheres negras.

24/6/2024

"Cadê meu celular?
Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome
E explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo
Se você se aventurar

[...]

Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim
Mão, cheia de dedo
Dedo, cheio de unha suja
E 'pra cima de mim? Pra cima de moá? Jamais, mané!
Cê vai se arrepender de levantar a mão 'pra mim
Cê vai se arrepender de levantar a mão 'pra mim"

O mês de junho no Nordeste é tipicamente conhecido pelos festejos juninos. À época em que o meu artigo foi designado para ser lançado no dia do São João, fiquei feliz. Pensei: Irei escrever sobre algo leve, enquanto degusto um licor de tamarindo, acompanhado de alguma comida típica. 

Ledo engano. Na verdade, o azedo do tamarindo acompanha a escrita, na medida em que “dos filhos deste solo”, pai nada gentil, ser mulher é perigoso. Me despindo de todas as aspas possíveis, a Pátria amada Brasileira só é gentil com os filhos deste solo, no masculino – homens brancos, cisgênero, heterossexuais e cristãos. Eis o combo do pacto narcísico. 

Há alguns dias uma ameça latente, vinda do Congresso Nacional, atentou contra os direitos humanos e reprodutivos das mulheres, sobretudo as negras. A ressalva para a tez mais escura é justamente por sermos as maiores vítimas da mortalidade materna por causas evitáveis, em decorrência da demarcação do racismo nas instituições de saúde, sobretudo o SUS.   

A Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para a votação do PL 1904/2024, popularmente intitulado PL do Aborto. A proposta é equiparar o aborto de gestação acima de 22 semanas, ao homicídio, no sentido de responsabilização criminal para a pessoa que gesta e a equipe médica responsável pela interrupção legal da gravidez. 

Atualmente, o Código Penal traz três situações em que o aborto não acarreta punições: quando a gravidez puser em risco a vida da mãe; em casos de anencefalia, ou seja, quando o feto não tiver cérebro, tornando-se incapaz de vida autônoma e consciente; e quando a gravidez for resultado de estupro. 

No caso do PL da família cristã brasileira, a alteração legislativa é para constar que "§ 1 Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código".

"§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária." 

Em uma das justificativas do PL dos senhores de engenho consta: "Se o nascituro é uma pessoa, como foi reconhecido pelo legislador, jamais o legislador admitiria que houvesse um direito de matar uma pessoa inocente para resolver um problema de segunda pessoa, por mais grave que fosse causado por uma terceira pessoa."1

Estamos diante de um projeto abjeto, contrário à dignidade sexual, de hipocrisia moral, proposto por homens da extrema direita desse país racista, que não se preocupam com a vida, ao contrário, se reúnem para ditar sobre a descartabilidade e revitimização dos corpos das mulheres. Problema este que não se resume apenas ao Congresso, mas aos gabinetes do sistema judiciário que tendo juízes/as, promotores/as e defensores/as equiparados a deus, reverberam comportamentos misóginos em suas decisões. 

Os dados sobre violência sexual são alarmantes. Segundo o IPEA2, estima-se que ocorram 822 mil casos de estupro no Brasil por ano. Desse total, apenas 8,5% deles chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde. Mais de 80% das vítimas são mulheres, 60% negras e o perfil dos agressores são homens próximos às vítimas. 

"Enquanto os homens exercem seus podres poderes", estamos diante do extremismo ideológico, proposto pelas bancadas BBB (da bala, do boi e da Bíblia) que progridem o apartheid à moda da casa brasileira. 

Dos vários absurdos e crimes disfarçados de política, cometidos neste solo, é imperioso pensar que discutirmos apenas sobre a posse da cadeira presidencial não faz sentido algum. O Congresso Nacional Brasileiro, a cada eleição se torna mais defasado, espelhando a política de terror, atraso e morte para as minorias deste país. 

Registros de estupros no Sistema de Informação de Agravos de Notificação – SINAN, demonstram que de 2009 a 2019 as vítimas de estupro por idade foram: 63.309 crianças de 0 a 10 anos; 98.221 de 11 a 20 anos; 26.650 de 21 a 30 anos; 14.854 de 31 a 40 anos; 7.512 de 41 a 50 anos; 2.952 de 51 a 60 anos; 1.872 mais de 61 anos3.   

Finalizo esse texto trazendo à reflexão a história da carochinha contada pelos deputados, em defesa da vida. Mas qual vida está sendo defendida nesse projeto, a dos próprios senhores? 

"Criança não é mãe e estuprador não é pai!"

__________

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.