"Cadê meu celular?
Eu vou ligar pro 180
Vou entregar teu nome
E explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo
Se você se aventurar
[...]
Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim
Mão, cheia de dedo
Dedo, cheio de unha suja
E 'pra cima de mim? Pra cima de moá? Jamais, mané!
Cê vai se arrepender de levantar a mão 'pra mim
Cê vai se arrepender de levantar a mão 'pra mim"
O mês de junho no Nordeste é tipicamente conhecido pelos festejos juninos. À época em que o meu artigo foi designado para ser lançado no dia do São João, fiquei feliz. Pensei: Irei escrever sobre algo leve, enquanto degusto um licor de tamarindo, acompanhado de alguma comida típica.
Ledo engano. Na verdade, o azedo do tamarindo acompanha a escrita, na medida em que “dos filhos deste solo”, pai nada gentil, ser mulher é perigoso. Me despindo de todas as aspas possíveis, a Pátria amada Brasileira só é gentil com os filhos deste solo, no masculino – homens brancos, cisgênero, heterossexuais e cristãos. Eis o combo do pacto narcísico.
Há alguns dias uma ameça latente, vinda do Congresso Nacional, atentou contra os direitos humanos e reprodutivos das mulheres, sobretudo as negras. A ressalva para a tez mais escura é justamente por sermos as maiores vítimas da mortalidade materna por causas evitáveis, em decorrência da demarcação do racismo nas instituições de saúde, sobretudo o SUS.
A Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para a votação do PL 1904/2024, popularmente intitulado PL do Aborto. A proposta é equiparar o aborto de gestação acima de 22 semanas, ao homicídio, no sentido de responsabilização criminal para a pessoa que gesta e a equipe médica responsável pela interrupção legal da gravidez.
Atualmente, o Código Penal traz três situações em que o aborto não acarreta punições: quando a gravidez puser em risco a vida da mãe; em casos de anencefalia, ou seja, quando o feto não tiver cérebro, tornando-se incapaz de vida autônoma e consciente; e quando a gravidez for resultado de estupro.
No caso do PL da família cristã brasileira, a alteração legislativa é para constar que "§ 1 Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código".
"§ 2 O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária."
Em uma das justificativas do PL dos senhores de engenho consta: "Se o nascituro é uma pessoa, como foi reconhecido pelo legislador, jamais o legislador admitiria que houvesse um direito de matar uma pessoa inocente para resolver um problema de segunda pessoa, por mais grave que fosse causado por uma terceira pessoa."1
Estamos diante de um projeto abjeto, contrário à dignidade sexual, de hipocrisia moral, proposto por homens da extrema direita desse país racista, que não se preocupam com a vida, ao contrário, se reúnem para ditar sobre a descartabilidade e revitimização dos corpos das mulheres. Problema este que não se resume apenas ao Congresso, mas aos gabinetes do sistema judiciário que tendo juízes/as, promotores/as e defensores/as equiparados a deus, reverberam comportamentos misóginos em suas decisões.
Os dados sobre violência sexual são alarmantes. Segundo o IPEA2, estima-se que ocorram 822 mil casos de estupro no Brasil por ano. Desse total, apenas 8,5% deles chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde. Mais de 80% das vítimas são mulheres, 60% negras e o perfil dos agressores são homens próximos às vítimas.
"Enquanto os homens exercem seus podres poderes", estamos diante do extremismo ideológico, proposto pelas bancadas BBB (da bala, do boi e da Bíblia) que progridem o apartheid à moda da casa brasileira.
Dos vários absurdos e crimes disfarçados de política, cometidos neste solo, é imperioso pensar que discutirmos apenas sobre a posse da cadeira presidencial não faz sentido algum. O Congresso Nacional Brasileiro, a cada eleição se torna mais defasado, espelhando a política de terror, atraso e morte para as minorias deste país.
Registros de estupros no Sistema de Informação de Agravos de Notificação – SINAN, demonstram que de 2009 a 2019 as vítimas de estupro por idade foram: 63.309 crianças de 0 a 10 anos; 98.221 de 11 a 20 anos; 26.650 de 21 a 30 anos; 14.854 de 31 a 40 anos; 7.512 de 41 a 50 anos; 2.952 de 51 a 60 anos; 1.872 mais de 61 anos3.
Finalizo esse texto trazendo à reflexão a história da carochinha contada pelos deputados, em defesa da vida. Mas qual vida está sendo defendida nesse projeto, a dos próprios senhores?
"Criança não é mãe e estuprador não é pai!"
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