Olhares Interseccionais

Ser antirracista é preciso

A experiência de preconceito enfrentada por uma jovem brasileira em um intercâmbio destaca a necessidade contínua de ações antirracistas, refletindo sobre a evolução e os desafios persistentes na luta contra o racismo estrutural no Brasil e no mundo.

10/6/2024

Recentemente, uma amiga me contava indignada sobre a situação vivenciada pela filha no exterior, vítima de preconceito e discriminação. Dizia ela que o sonho da adolescente sempre foi fazer intercâmbio. O presente de aniversário de 17 anos foi justamente cursar o último ano do ensino médio em um país do hemisfério norte, o que havia se transformado em um verdadeiro pesadelo.

A jovem é o padrão de beleza considerado ideal para boa parte da população brasileira: loira, olhos azuis, magra e alta. Com tais características físicas não lhe faltaram portas e janelas abertas ao longo da vida. Qual não foi a surpresa quando a jovem, após um mês e meio fora do país, ligou deprimida, querendo cancelar o programa de estudos. Vítima de isolamento, discriminação e preconceito diariamente, faltavam-lhe ferramentas emocionais para lidar com a situação inédita e inesperada. A pela clara, fator de distinção positiva no Brasil, não foi credencial suficiente para garantir respeito, acolhimento, amizades e tratamento digno no exterior.

Nos dias que se seguiram, a conversa não saía da minha cabeça. Resgatei na memória adormecida o meu próprio sofrimento diante do preconceito que vivenciei ao longo da infância e da adolescência e ainda vivencio.

Descobrir, pelo olhar do outro, que você é considerada inferior e merecedora de tratamento diferenciado, por conta do seu fenótipo ou da sua origem, é cruel e causa uma dor imensa, sobretudo em uma fase da vida em que não se tem repertório emocional suficiente para avaliar o contexto histórico precedente e suas repercussões sociais, de modo a exteriorizar de forma construtiva a indignação.

Como mulher negra, eu bem sei disso. Isolamento, exclusão, discriminação, preterimento, fazem parte do cotidiano da população negra que “se vira como pode”, sem recursos emocionais, com pouco repertório racial, muitas vezes sem educação, sem emprego e sem moradia. A ressignificação das situações vivenciadas é quase uma obrigação cotidiana para dar conta da vida.

Não por acaso, dados do Ministério da Saúde e que constam do Painel de Indicadores do SUS nº10, apontam que o racismo tem relação direta com os transtornos mentais da população negra.

É inegável que o Brasil vem evoluindo na luta contra o racismo, contando com um conjunto de normas que têm por objetivo fomentar a equidade racial, coibir e punir o crime de racismo, inserir os (as) negros (as) nas universidades e no serviço público.

Além disso, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, firmada na 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, na Guatemala, em 5 de junho de 2013 foi promulgada por meio do Decreto 10.932/2022 e estabelece, em seus artigos 2º e 3º, que todo ser humano é igual perante a lei e tem direito à igual proteção contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância, em qualquer esfera da vida pública ou privada, bem como tem direito ao reconhecimento, gozo, exercício e proteção, em condições de igualdade, tanto no plano individual como no coletivo, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, consagrados na legislação interna e nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes.

Da mesma forma, o Brasil, assim como outros 192 países, é signatário da Agenda 2030 das Nações Unidas, assumindo o compromisso de concretizar os ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável), dentre eles o de número 10, que visa reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles, inclusive empoderando e promovendo a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra.       

Mas ainda falta muito. O racismo estrutural tem a força das raízes de mais de 500 anos que o sustentam.

A filha da minha amiga não voltou. Felizmente, superou o impacto inicial e vai concluir o tão sonhado intercâmbio, apesar do preconceito do qual ainda é vítima. Tenho a certeza de que ela, inteligente e sensível como sempre foi, não voltará a mesma. Ninguém passa por tais circunstâncias impunemente.

Não basta não ser racista. É preciso ser antirracista. Sempre, em qualquer lugar do mundo, e sob quaisquer circunstâncias.     

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Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.