Olhares Interseccionais

Me chame pelo meu nome*: o que a lei não alcança

As pautas mais urgentes para a comunidade LGBTQIAPN+, como a criminalização da LGBTfobia e a criação/ampliação de mecanismos de proteção para a população, são raramente enfrentadas pelo Poder Legislativo brasileiro, e os poucos projetos de lei que buscam enfrentar os temas são, em sua maioria, arquivados .

27/5/2024

Todos os dias sob o sol escaldante soteropolitano, ou sob a chuva que vez evapora, vez se acumula pelo chão de pedra, Leila circula firme pelas ruas do Pelô. Turbante alto, cabeça erguida e seios fartos marcam a altivez da sua passagem. Não é de carne ou silicone, o seu peito é de coragem. Leila grita o seu nome completo para quem quiser ouvir. Afinal, o seu nome só foi possível por meio de um processo de retificação guiado pela Defensoria Pública do Estado da Bahia.

O caso de Leila se somou a tantos outros que, na Bahia, se iniciou com Luana Martins, a primeira transexual do Estado a obter o nome social, quando a retificação extrajudicial ainda não era liberada em cartório1.

Apenas no ano de 2022 a legislação pátria passou a permitir que qualquer pessoa maior de 18 anos, seja ela cisgênero ou transgênero, pudesse requerer a retificação de sua certidão de nascimento ou casamento ao cartório de registro civil, adequando o nome e a identidade de gênero pelos quais se reconhece2. Essa mudança ocorreu por meio da lei 14.382/2022, e antes dessa alteração legislativa havia apenas o Provimento nº 73/2018 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que garantia que as retificações poderiam ser realizadas pelas pessoas interessadas diretamente nos cartórios.

As vivências de Leila voltaram à tona no último 17 de maio, data que marca o Dia Internacional Contra a LGBTFobia, pois não é apenas a altivez que registra presença nas passagens de Leila pelas ruas do Centro.

A sua caminhada é marcada por olhares tortos e desconfiados. As suas mãos são racialmente observadas por aqueles que apertam as bolsas e escondem as carteiras, para esses, todos os corpos negros que ocupam as ruas são iguais, a presunção passa longe da inocência. Cada passo de Leila é guiado por vaias e cochichos preconceituosos. E as suas falas são constantemente interrompidas para correções criminosas de pronome.

O nome de Leila foi protegido pela lei. A sua integridade física e mental não. O Dossiê de LGBTfobia Letal denunciou que, apenas em 2023, 230 pessoas LGBTs morreram de forma violenta no Brasil. 61,74% eram travestis e mulheres transexuais3.

Aos crimes cometidos contra esses corpos, foi apenas garantido, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), um enquadramento precário na Lei do Racismo (Lei nº 7.716/89). Muitas são as inseguranças ocasionadas pela ausência de tipificação específica, a exemplo da impossibilidade de distinção entre casos de homofobia ou transfobia, pois os únicos enquadramentos criminais possíveis são “preconceito de raça ou de cor” e “injúria por preconceito”4.

As pautas mais urgentes para a comunidade LGBTQIAPN+, como a criminalização da LGBTfobia e a criação/ampliação de mecanismos de proteção para a população, são raramente enfrentadas pelo Poder Legislativo brasileiro, e os poucos projetos de lei que buscam enfrentar os temas são, em sua maioria, arquivados5.

Outra lacuna legislativa que custa caro às pessoas transexuais, é a trazida pela Lei do Feminicídio (lei 13.104/2015), quando o legislador optou por utilizar sexo feminino ao invés de gênero feminino, em manifesta exclusão de todas as mulheres que não estariam enquadradas no conceito biológico de mulher. E, apesar de serem a parcela que mais morre por crimes motivados pelo gênero, as travestis e transexuais estão à mercê da interpretação da lei no caso concreto, das ilações doutrinárias e do entendimento jurisprudencial, ainda em construção6.

A própria retificação de nome e gênero apesar de ter se tornado mais fácil, é ainda cercada de muita burocracia, a começar por uma série de documentos que devem ser providenciados pelas pessoas interessadas, e que envolvem acesso à informação, orientação, tempo e disponibilidade financeira.

A lei garante o nome, mas não garante a vida, nem mesmo as condições de vida. Quantas vezes o nome de Leila precisa ser registrado nos sistemas oficiais dos entes e órgãos públicos para que lhe seja garantido direitos básicos, como moradia, segurança, saúde e trabalho? Política inclusiva não é só para pendurar na parede e publicar nas redes.

Porque as instituições que auxiliam no alcance ao direito da personalidade, a exemplo das Defensorias Públicas e do Ministério Público, não realizam a conexão para a concretização de mecanismos que garantam a dignidade? O Estado brasileiro é pautado pela intersetorialidade das políticas públicas, os entes e órgãos devem trabalhar em rede, recepcionar a demanda, identificar as necessidades, orientar, atender ou redirecionar.

Quantos olhares atravessados Leila vai suportar até a sociedade civil se movimentar? A autora faz mais do que escrever artigos? E o(a) leitor(a), o que faz? Abraça ou marginaliza?  

Esse texto é dedicado à todas as Leilas que ainda não foi possível abraçar.

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1 Disponível aqui Acesso em 22 de maio de 2024.

2 Disponível aqui. Acesso em: 23 de maio de 2024.

3 Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024.

4 Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024.

5 Disponível aqui. Acesso em: 23 de maio de 2024.

6 SILVA, Érika Costa da. O agravamento da violência de gênero pelo discurso jurídico: aspectos contraditórios do uso, pela defensoria pública de teses violadoras de direitos das vítimas. In: Coleção Não Há Lugar Seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero. V. 3, p. 16-35. Disponível aqui. Acesso em: 22 de maio de 2024.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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