No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci
Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia
Um dia com fome, no outro sem o que comer
Sem nome, sem identidade, sem fotografia
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver.1
Há 136 anos, a lei imperial 3.353/1888 declarou formalmente extinta a escravidão no Brasil. No último país das Américas a dar esse passo - não sem pressão nos âmbitos nacional e internacional - a abolição foi celebrada, mas a consequência foi uma aposta sistematizada na inviabilidade da existência da população negra no Brasil. Fruto dessa aposta, foi implementada uma série de políticas públicas voltadas ao incentivo da vinda de grupos europeus para povoar e embranquecer o país, exclusão da população negra dos centros urbanos, e um intenso projeto de criminalização dos signos existenciais dessa população, dando início a uma estratégia de “controle social” a partir de métodos legalmente aceitos, e baseado em um sistema de discriminação a partir da raça.
O racismo é tecnologia, e, portanto, está em constante aperfeiçoamento. Na sociedade contemporânea, a ideia de controle social para a gestão de corpos encontrou solo fértil na concepção dita moderna no Direito Penal e a sua instrumentalização pelo processo penal, gerando o etiquetamento, seleção e encarceramento em massa dos corpos indesejados, cuja cor não coincidentemente reflete o negrume da noite, e se deparam com a realidade de que os gritos pela vida, as súplicas por ar quando não conseguem respirar em razão de asfixia mecânica, e os incessantes brados pelo fim do genocídio legalizado não ecoam na teia social. Esta segue escamoteada pelo mito de ser racialmente democrática, afinal, as políticas de segurança pública e a instrumentalização do processo penal andam de mãos dadas na validação dessa violência sistematizada.
O desfecho dessa trama é o contraste entre a invisibilidade da população negra no que diz respeito à promoção de políticas públicas afirmativas voltadas à efetivação da igualdade racial, e o apontamento de todos os holofotes quando falamos das políticas de repressão e controle social através da segurança pública. Prova inequívoca disso é a utilização do procedimento de reconhecimento fotográfico em delegacias do país como meio de prova para a persecução penal. De acordo com pesquisas pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege) e pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DP-RJ), de 2012 a 2020 foram realizadas ao menos 90 prisões injustas por meio de reconhecimento fotográfico. Desse total, 79 contam com informações conclusivas sobre a raça dos acusados, sendo 81% deles pessoas negras, somando-se pretos e pardos conforme a definição do IBGE.
O reconhecimento de pessoas é um procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, com redação inalterada desde 1941, ano da entrada em vigor das regras autoritário-escravistas do jogo de acusar alguém no Brasil. Em 2021, a Sexta Turma do STJ deu uma guinada jurisprudencial sobre esse tema, viabilizando novos rumos quanto ao reconhecimento de pessoas no processo penal e incentivando o abandono do status de “mera formalidade” do art. 226 do CPP, e desenhando o estabelecimento de critérios mais concretos para a aplicação do dispositivo.
Nada obstante, todo o avanço é freado quando, defensivamente, a reação vem através de articulações hermenêuticas direcionadas a manter o funcionamento desse jogo de espelhos, materializados pelos entendimentos e práticas como: “o reconhecimento por mera exibição de fotografias só pode ser uma etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal”2; o reconhecimento pessoal viciado não impede que seja usado como indício mínimo apto a autorizar o decreto de prisão cautelar preventiva3; e autorização judicial para linha de suspeitos para reconhecimento por videoconferência4, que seguem sendo a tônica do “fazer justiça” no Brasil, afinal o reconhecimento, a despeito de decisões contrárias, segue como uma mera formalidade para atestar a autoria delitiva de suspeitos naturais.
Novo capítulo dessa história vem sendo escrito na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), onde foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar a prática de reconhecimento fotográfico realizado nas Delegacias de Polícia no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, um dos estados com o maior índice de utilização do reconhecimento fotográfico em inquéritos policiais. O objetivo da CPI é investigar justamente esses casos para aprimorar as ações dos agentes da Polícia Civil do estado, e produzir relatório final para orientar um manual público e transparente de procedimentos a serem adotados nas delegacias.
Lamentavelmente, no dia 07 desse mês de maio, mês esse que deveria ser um marco da emancipação da população negra, o relatório aprovado na CPI proposto pelo deputado Márcio Gualberto (PL), veio com a supressão do texto qualquer menção ao racismo, pela filtragem racial da polícia e seletividade penal da justiça, presente nas atuais práticas de reconhecimento fotográfico, e, em suma, negando o racismo estrutural como um dos motivos de prisões injustas de jovens negros no estado, contrariando as estatísticas, dados e estudos sobre a matéria. A presidente do colegiado, deputada Renata Souza (PSOL), a seu turno, apresentou um relatório divergente, demonstrando como o reconhecimento por foto reproduz práticas racistas. Ambos os relatórios deverão ser apreciados e votados pelo plenário da ALERJ.
A história segue em curso, e a situação a ser apreciada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro se traduz é crucial na luta pela efetivação da igualdade racial e para a continuidade do enfrentamento da seletividade penal. Enquanto houver secessão em relação à humanidade, não será possível a economia da restituição, da reparação ou da justiça. Reparação, reparação e justiça são as condições para a elevação coletiva em humanidade5. Lutamos pela primavera que há de chegar, mesmo quando o mundo lá fora insiste em sufocar o brotar das flores da igualdade. Que o Rio de Janeiro seja pedra de assente de novas práticas no procedimento de reconhecimento pessoal nas delegacias, eis que não há processo penal acusatório e democrático sem o expurgo do entulho autoritário.
13 de maio passa, 14 de maio se segue, mas a resistência contra o negacionismo em relação ao racismo, a luta contra a invisibilidade dos corpos negros na promoção de políticas públicas afirmativas, contra a seletividade e etiquetamento instrumentalizados pelos institutos penais, e contra os ranços inquisitório e racista do processo penal segue.
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1 MATUMBI, Lazzo. 14 de maio. Salvador. 2019. Lazzo Motumbi, Vol.1.
2 HC n. 598.886/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/10/2020, DJe de 18/12/2020.
3 HC n. 804.859, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 27/04/2023.
4 Processo 1514239-32.2020.8.26.0228. 2ª Vara Criminal do Foro Central Criminal da Barra Funda/São Paulo. Juiz: Rodrigo Cesar Muller Valente, julgado em 20 de abril de 2021.
5 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Traduzido por: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 309.