A chamada consulta prévia consiste no direito de povos e comunidades tradicionais de serem ouvidos sempre que medidas administrativas ou legislativas possam os atingir coletivamente. O exercício desse direito deve ser antecedente à execução de obras, ações, políticas ou programas, da esfera pública ou privada, potencialmente danosos às formas de reprodução material e imaterial desses grupos. Por isso é identificado como "prévio".
A consulta está prevista na Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de "povos indígenas e tribais" e foi pactuada em Genebra, em 27 de junho de 1989. No Brasil, a Convenção foi ratificada em 2022 e promulgada em 19 de abril de 2024, por meio do decreto 5.051. A partir de então, integra o ordenamento jurídico brasileiro e, por abordar matéria de direitos humanos, possui um caráter supralegal, ou seja, está acima das leis e abaixo da Constituição Federal.
Apesar de a OIT adotar originalmente a nomenclatura "povos indígenas e tribais" para definir os destinatários do direito a consulta prévia, já é forte o entendimento de que a norma protege os diversos povos e comunidades classificados, reconhecidos ou auto-reconhecidos como tradicionais. Uma restrição a essa noção iria de encontro ao direito a autodeterminação dos povos tradicionais, previsto na mesma Convenção n. 169.
No Brasil, o decreto 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, define essas populações como "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição".
Como direito dos povos e comunidades tradicionais, a consulta prévia é instrumento imprescindível ao combate ao racismo. Ela possibilita levar em consideração as visões de mundo e o território dessas coletividades sempre que potencialmente ameaçados. Afinal, só quem sabe os possíveis impactos sobre seu modo de vida são os próprios grupos tradicionais. Visto desse ângulo, a consulta representa uma substancial ferramenta de confronto ao racismo institucional, pois afasta a imposição do que seja impactos às comunidades por terceiros, sobretudo pelo Estado.
Quanto ao reconhecimento e aplicação da consulta, sem sombra de dúvidas temos a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) como principal fonte de julgamentos sobre a matéria. Tal Corte, aliás, foi responsável pela admissão da consulta prévia como princípio geral do Direito Internacional, dando-lhe valor prático em decisões que protegem o direito dos povos tradicionais, sobretudo de indígenas.
Além disso, a Corte IDH ajudou na identificação do que seriam os atributos essenciais do direito a consulta, definindo que ela deve ser: prévia, antecedendo à execução de qualquer proposta de impacto; livre, estando afastada de ameaças, coação ou da interferência nos processos decisórios coletivos das comunidades; informada, devendo ter os povos e comunidades um nível profundo de compreensão dos possíveis impactos, o que que inclui processos formativos, materiais didáticos e, quando necessário, traduções; de boa-fé, sem que Estado ou empreendedores omitam informações que, caso os grupos consultados conhecessem, os poderiam levar a negar a realização da proposta; e, culturalmente adequada, implicando no respeito às modalidades tradicionais de tomada de decisão, quaisquer que sejam elas.
No entanto, o direito à consulta prévia ainda carece de robustos marcos jurídicos no plano interno ao Brasil. O Supremo Tribunal Federal (STF) nunca enfrentou a temática em processo de natureza objetiva, ou seja, naqueles que possuem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. O tema vem sendo levantado e debatido em processos de natureza subjetiva, aplicando-se as decisões apenas nos respectivos casos.
Apesar disso, reconhece o STF que a matéria possui caráter constitucional, atraindo sua competência de julgamento. Por outro lado, uma visão mais ampla das decisões já proferidas pelo Tribunal possibilita afirmar que há um reconhecimento consolidado sobre o direito a consulta prévia nas hipóteses de empreendimentos no entorno de terras indígenas.
As decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) são mais vacilantes. Na realidade, a maioria de seus precedentes sobre a consulta sequer chegou a enfrentar o mérito da questão, ou seja, não analisou o conteúdo jurídico do direito a consulta. Isso por terem sido extintos por questões processuais preliminares. Quanto aos julgados que enfrentaram o mérito, desperta preocupação aqueles que definiram que a consulta deve ser efetivada no curso do processo de licenciamento ambiental do empreendimento. Tal entendimento transforma o direito a consulta numa fase procedimental e reduz em demasia seu significado, uma vez que ela possui um leque de proteção aos grupos tradicionais que vai muito além da matéria que pode ser debatida e decidida em um licenciamento.
Abaixo do STF e STJ predomina igualmente uma variação de entendimentos sobre a definição, destinatários e finalidade da consulta. Em linhas gerais, juíze(a)s e tribunais reconhecem a existência do direito, mas o restringem a determinados grupos; relativizam o conceito de dano e impacto; confundem o direito a consulta com uma fase do licenciamento ambiental; e o reduzem a uma garantia de natureza processual ou mesmo a um momento específico de escuta dos grupos tradicionais, a exemplo de uma audiência pública.
Na afirmação da consulta prévia como direito de povos e comunidades tradicionais no Brasil, é preciso avançar na consolidação, pelo Estado brasileiro (Executivo, Legislativo e Judiciário) de questões básicas sobre o tema. Quem deve ser consultado? Quando? Em quais condições? Quais os efeitos da consulta? Essas e outras perguntas afastam, concretamente, interpretações e condutas oficiais casuísticas e dispersas, o que só fragiliza a proteção a grupos vulnerabilizados.
Mais do que algo alienígena e afastado da realidade brasileira, é preciso reconhecer a consulta prévia como um instituto incorporado ao nosso Direito, inclusive no plano constitucional, pois atrelado diretamente a garantias como igualdade, pluralismo, diversidade e democracia. É necessário perceber a consulta como ferramenta eficaz e imprescindível de combate ao racismo e ao genocídio que predominaram em nossa História e que, infelizmente, reproduzem-se na atualidade, de forma especial quando se trata de empreendimentos públicos e privados com impacto em territórios de povos e comunidades tradicionais.