Olhares Interseccionais

As comissões de heteroidentificação e o Exame Nacional da Magistratura

O texto aborda o processo de implementação e execução do Exame Nacional da Magistratura (ENAM) e, em particular, a questão da heteroidentificação de pessoas negras e indígenas para fins de reserva de vagas e ações afirmativas.

3/4/2024

O Exame Nacional da Magistratura (ENAM) foi instituído pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução CNJ nº 531, de 14 de novembro de 2023, com o objetivo de aprimorar o ingresso na magistratura brasileira mediante um exame nacional unificado, que confere habilitação para inscrição em concursos da magistratura promovidos pelos tribunais regionais federais, tribunais do trabalho, tribunais militares e tribunais dos estados e do Distrito Federal e dos territórios.

As edições do ENAM serão organizadas pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), com a colaboração da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), e as regras gerais para a realização do exame encontram-se definidas na Resolução ENFAM nº 7, de 7 de dezembro de 2023.

Em conformidade com os referidos atos normativos do CNJ e da ENFAM, os candidatos inscritos como negros ou indígenas devem ter sua opção de concorrência validada pela comissão de heteroidentificação do tribunal de justiça do estado de seu domicílio, instituída na forma da Resolução CNJ nº 203/2015, antes da realização da prova, nos termos e prazos previstos no edital do Exame Nacional da Magistratura.

As Comissões de Heteroidentificação no âmbito do Poder Judiciário Nacional têm sua previsão no bojo da Resolução CNJ nº 203/2015, com a redação dada pela Resolução CNJ nº 457, de 27 de abril de 2022, que determinou aos tribunais instituir, obrigatoriamente, comissões de heteroidentificação, formadas necessariamente por especialistas em questões raciais e direito da antidiscriminação, voltadas à confirmação da condição de negros dos candidatos que assim se identificarem no ato da inscrição preliminar.

Ademais, a Resolução CNJ nº 541, de 18 de dezembro de 2023 veio aperfeiçoar a regulamentação do procedimento de heteroidentificação para os concursos de ingresso nas carreiras do Poder Judiciário (magistratura, servidores efetivos e titulares de serventias extrajudiciais), diante da necessidade de auxiliar na uniformização dos procedimentos adotados pelos tribunais na composição de suas comissões de heteroidentificação, disciplinando a instituição das comissões de heteroidentificação e o respectivo procedimento nos concursos públicos realizados no âmbito do Poder Judiciário, na forma prevista nas Resoluções CNJ nº 75/2009, 81/2009 e 203/2015.

Observa-se, portanto, que o procedimento de heteroidentificação é um instrumento de compliance institucional antidiscriminatório, na medida em que visa garantir a efetividade da ação afirmativa de reserva de vagas a candidatos(as) negros(as) nos concursos públicos de ingresso no serviço público do Poder Judiciário, resguardando a crecibilidade, a confiabilidade, o controle social e a legalidade do procedimento.

Nesse sentido, a própria Res. CNJ nº 541/2023 trouxe, entre várias contribuições, a previsão de princípios e diretrizes aplicáveis ao procedimento de heteroidentificação, entre os quais destacamos o respeito à dignidade da pessoa humana, a observância do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal e a garantia de padronização e de igualdade de tratamento entre candidatos(as) submetidos(as) ao procedimento de heteroidentificação promovido no mesmo concurso público.

No âmbito do Exame Nacional da Magistratura, o procedimento de heteroidentificação de pessoas negras e indígenas foi detalhado pelo Edital nº 01/2024 - ENAM, publicado em 1º de fevereiro de 2024, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), instituição responsável pela aplicação da prova do ENAM.

Quanto às pessoas indígenas foi adotado o critério da autodeclaração do candidato, corroborada por prova documental, consistente no envio, no ato da inscrição, do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) ou de declaração sobre sua condição de pertencimento étnico, assinada por liderança reconhecida de sua comunidade.

Para as pessoas negras foi adotado o critério da autodeclaração do candidato no momento da inscrição, condicionado ao procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração, ou seja, a autodeclaração deverá ser confirmada mediante a apreciação por banca de heteroidentificação, composta por especialistas, que utilizará na sua apreciação exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pela examinanda ou pelo examinando.

Neste momento, relevante se destacar dois pontos centrais para a compreensão do instituto da heteroidentificação de pessoas negras: 1) quem é o destinatário da ação afirmativa? 2) em que consiste o critério fenotípico?

São destinatários da ação afirmativa as pessoas negras, ou seja, quem efetivamente é negro no Brasil. Negras são as pessoas pretas ou pardas segundo uma análise fenotípica, que utiliza aspectos visíveis, estéticos, relativos às características externas ou fisionômicas das pessoas, a aparência do indivíduo, como é visto pela sociedade, a partir de seus traços externos característicos, a exemplo da cor ou tonalidade da pele, características da face, textura do cabelo, cor e formato dos olhos, dentre outros.

Quem é negro no Brasil é alvo da heteroidentificação social sistematicamente, a partir de seus traços fisionômicos, especialmente para ser destinatário das mais diversas formas de discriminação e preconceito racial baseado exclusivamente no fenótipo, e assim, no momento de ter acesso a políticas públicas afirmativas de caráter positivo também este critério fenotípico e de leitura social, como pessoa pertencente a grupos raciais historicamente discriminados, deve ser utilizado para esse desiderato.

Portanto, para a compreensão de quem é negro no Brasil, não basta uma análise meramente dermatológica, pigmentológica ou de colorimetria, pois se trata de um conceito histórico e social, que demanda uma percepção da leitura social acerca daquela pessoa dentro do cenário social a que ela integra, a partir de suas características fisionômicas, dos traços físicos negróides que demonstrem a percepção social sobre o candidato preto ou pardo, ou seja, de que aquela pessoa integra um grupo étnico historicamente discriminado.

Somado a isso, aplica-se uma análise a partir das realidades regionais, ou seja, segundo a composição e as características étnicas e raciais do Estado em que aquela pessoa reside, e assim, andou muito bem a Resolução e o Edital do ENAM em determinar que a avaliação do procedimento de heteroidentificação seja feita pela banca examinadora do Tribunal de Justiça do estado de residência do candidato.

Uma pessoa lida como negra no Rio Grande do Sul não necessariamente será lida como negra no Estado do Maranhão, por exemplo, e consequentemente, não será validada por Comissões de Heteroidentificação distintas.

Nesse sentido, destacamos a redação do art. 9º da Res. CNJ 541/2023, que preconiza que a comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato, características fenotípicas estas do momento da realização do procedimento de heteroidentificação, não se considerando para essa análise fenotípica quaisquer registros ou documentos pretéritos eventualmente apresentados pelos interessados, inclusive imagem e certidões referentes à confirmação em procedimentos de heteroidentificação realizados em outros concursos públicos federais, estaduais, distritais e municipais.

Nesse contexto, observa-se que o maior desafio das comissões de heteroidentificação é analisar a condição da pessoa negra parda. Importante ser ressaltado que a pessoa parda, para os fins das ações afirmativas, é aquela pessoa negra de pele mais clara, mas que ostenta traços fenotípicos negróides, e ausentes essas características negróides a pessoa pode ser parda, no entanto, não se amoldará ao conceito de pessoa negra.

Conforme já manifestado pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do controle concentrado de constitucionalidade acerca das cotas raciais nas universidades (ADPF 186) e no serviço público (ADC 41), nos quais, inclusive, reconheceu-se a constitucionalidade da realização de procedimento de heteroidentificação a partir de critério fenotípico dos candidatos autodeclarados negros, o objetivo central das ações afirmativas para pessoas negras é necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira.

Acrescente-se que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana contra o Racismo e a Discriminação Racial, incorporada com status de Emenda Constitucional, que em seus dispositivos consagra a adoção de ações afirmativas com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades para a população negra.

Assim, as cotas raciais não tem por destinatárias todas as pessoas pardas, originadas do processo de miscigenação das etnias que compõem a diversidade brasileira, mas apenas as pessoas pardas negras.

Nesses moldes, são dignos de elogios os trabalhos realizados pelas Comissões de Heteroidentificação dos Tribunais Estaduais no cumprimento da missão constitucional e legal durante o mês de março de 2024, na condução das etapas de análise fotográfica e bancas de heteroidentificação realizadas com os candidatos autodeclarados negros inscritos no ENAM.

Merece destaque que a efetividade dos trabalhos das Comissões de Heteroidentificação está incluída nas obrigações assumidas por todos os tribunais do Brasil, que aderiram ao Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça.

O Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial consiste na adoção de programas, projetos e iniciativas a serem desenvolvidas em todos os segmentos da Justiça e em todos os graus de jurisdição, com o objetivo de combater e corrigir as desigualdades raciais, por meio de medidas afirmativas, compensatórias e reparatórias, para eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário.

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Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.