Olhares Interseccionais

Olho vivo*, corpo negro vivo: Carnavalizou na Bahia sem a implantação das câmeras nas fardas da PM

O texto aborda de maneira impactante a realidade da violência policial na Bahia, especialmente destacando o impacto desproporcional nas comunidades negras.

22/1/2024

Triste Bahia! ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.
 

A ti tocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.
 

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz brichote.
 

Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote! 

Triste Bahia – Gregório de Mattos 

A folia momesca se aproxima, Salvador exala o perfume das festas de largo e as escadarias do Bonfim foram lavadas com água de cheiro. O tapete branco dos filhos de Gandhy desfila pelo Pelourinho, assim como o rufo dos tambores do Olodum. O Ilê Aiyê completou 50 anos de história e resistência e a deusa e as princesas do ébano dão o tom das cores e danças.

O gigante faz o L, Veveta está no comando, mas quem está macetando, conforme a música candidata ao carnaval, é a Segurança Pública do Estado da Bahia. Ainda não temos previsão concreta sobre a implantação das câmeras no fardamento da Polícia Militar. Pela ordem, no carnaval, poderíamos ter algumas fardas de tom amarronzado filmando as operações, e não só corpos negros tombando na avenida.1

Na Bahia, os dados sobre mortes de civis em supostos confrontos com a polícia, são escandalosos, em 8 anos, tivemos o aumento de 313%. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, as polícias civis e militares da Bahia fizeram 1.464 vítimas fatais durante confrontos e em operações.

São negros os corpos que perfazem as estatísticas e são negros os corpos que poderão ter perpetuado mais uns anos de vida após a implantação e correto monitoramento das câmeras. Nos choca saber que a cada 23 minutos... (pode completar a frase), um jovem negro morre no Brasil. Não descansamos ao saber que a cada 100 mortos pela polícia na Bahia, 98 são negros.2

A tecnologia, objeto de estudo do Centro de Ciência aplicada à segurança pública da FGV, através do relatório de pesquisa “Avaliação do impacto do uso de câmeras corporais pela Polícia Militar do Estado de São Paulo”3, indica que o uso das câmeras cumpre um papel fundamental na queda do uso da força policial, em especial nos casos de homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial, também conhecidos por auto de resistência.

E falando em auto de resistência, alta é a resistência em supervisionar operações, na contramão do combate ao uso letal da força por parte das polícias. De acordo com a pesquisa, “essa tecnologia reduziu em 0,22 em média o número de mortes, [...] o que representa uma redução de 57% em relação à média do período pré-tratamento.”4

Ou seja, verificamos que o uso e supervisionamento das câmeras, estimulam o trabalho do policial de acordo com os padrões éticos constitucionais. “A principal hipótese que justifica a redução do uso da força pelas câmeras corporais, portanto, diz respeito ao sistema de controle e supervisão da PMESP. De fato, há evidência qualitativa de que a introdução da tecnologia na corporação foi acompanhada de uma forte estruturação de supervisão e controle”.

Isto porque, as câmeras da Polícia de São Paulo não são acionadas manualmente pelo PM, além disso, gravam todo o turno do policial. Em contrapartida, no Rio de Janeiro, houve forte resistência por parte dos policiais que quase não acionaram as câmeras durante as operações.5 Percebam, de um lado, há o acionamento automático com significativa redução de mortes e do outro, o acionamento manual, que não impactou positivamente o uso da tecnologia.

São questões que devem ser analisadas de forma séria e minuciosa, mas não podemos esperar infinitamente, navegando à própria sorte, enquanto o sangue de jovens negros jorra entre as ruas da Triste Bahia.

“Máfia é máfia e o argumento é mandar grana, em pleno carnaval, fazer nevar em Copacabana. 1 por rancor, 2 por dinheiro, 3 por dinheiro, 4 por dinheiro, 5 por ódio, 6 por desespero,7 pra quebrar a tua cabeça num bueiro. Enquanto isso a elite aplaude seus heróis, Pacote de Seven Boys.” Criolo – Boca de lobo.

__________

*Referência ao Programa Olho Vivo, que introduziu as Câmeras Operacionais Portáteis (COP) no Estado de São Paulo.

1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.