“A persistência da Constituição é a sobrevivência da Democracia”
Ulysses Guimarães
Nos últimos anos, temos testemunhado uma crescente contaminação de parte da sociedade brasileira pelo ódio. Essa epidemia, que talvez tenha no impeachment de Dilma Rousseff uma espécie de estopim, alastrou-se com os nefastos efeitos da Lava Jato e a vitória do bolsonarismo, culminando nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Ali, em plena Praça dos Três Poderes, toda a inescrupulosa ira de falsos patriotas foi descarregada nos mais importantes símbolos da nossa República.
Vivemos tempos de ódio à Democracia! Não se trata apenas de aversão direcionada a determinados grupos sociais historicamente vulnerabilizados – como mulheres, pessoas negras, quilombolas, indígenas, transexuais etc. –, mas de repulsa à própria Democracia e seus potenciais efeitos de inclusão pluriversal.
Apesar da inegável ascensão da extrema direita, o regime democrático ainda se apresenta como predominante em escala mundial. Todavia, ele pode produzir ameaças internas quando seus elementos constitutivos são erigidos a absolutos, escapando a limitações recíprocas. A simplificação que reduz o plural ao único (ou universal) abre caminhos para o descomedimento.1 Desse modo, a liberdade descomedida é capaz de subjugar o bem-estar da coletividade à tirania de indivíduos ou de grupos hegemônicos, resultando numa impregnação totalitária da própria Democracia.2
Igualdade e liberdade são princípios fundacionais cujo nível de efetividade indica maior ou menor concretude de um Estado Democrático de Direito. No entanto, em sociedades estruturalmente desiguais, a liberdade parece ser mais atrativa, sobretudo porque garantida apenas para poucos, que a desvirtuam, convertendo-a em liberdade para, em nome da Democracia, porém contra ela, subjugar, outrificar e, assim, manter seus privilégios.
Daí resultam fenômenos como os atos de lesa pátria de 8 de janeiro, cujos atores usurpam o direito à liberdade, tornando-o arma contra a igualdade democrática. O que se almeja é, na verdade, a manutenção de uma mera Democracia de semelhantes.3 Por isso, um dos principais prismas de uma sociedade democrática consiste em delimitar os limites da tolerância aos intolerantes.
Não existe liberdade para atacar a Democracia!
Nos 35 anos de sua promulgação, não podemos esquecer que o espírito democrático é a própria essência da Constituição Federal de 1988, primeira na nossa história a consagrar a igualdade material, alicerce para a correção das desigualdades sociais. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; a irmandade regional; o reconhecimento dos direitos sociais; a igualdade entre homens e mulheres em direitos e deveres; os direitos dos povos indígenas e quilombolas.
Em que momento nos desviamos desses caminhos? Quando foi que perdemos a coragem constituinte?
Se os perigos do ódio à Democracia seguem rondando os nossos son(h)os, precisamos ousar amá-la genuinamente, dedicando-lhe uma ode, a mais importante que temos: a nossa Constituição cidadã. É chegada a hora de promover uma re-orientação constitucional do Estado e da própria sociedade brasileira.
Que tenhamos, então, a “audácia inovadora” da nossa “Constituição coragem”, desta feita para concretizá-la sem subterfúgios ou distorções egóicas e individualistas.
Que o “representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela”4, de trabalhadoras/es, de indígenas, de mulheres e de todo o povo brasileiro – tão presente na Constituinte – traga ventos democráticos, de uma Democracia pluriversal, de busca por igual liberdade para todas as pessoas e grupos sociais; onde todos/as se sintam e sejam parte da tão sonhada aquarela do Brasil!
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1 TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
2 Paulo Otero, A Democracia Totalitária, Editora Princípia, 2015.
3 MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. N-1 Edições: São Paulo, 2023.
4 Trechos entre aspas retirados do discurso de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, proferido na sessão de 5 de outubro de 1988