A recente aprovação de medida, pelo Conselho Nacional de Justiça, para a promoção da paridade de gênero no Poder Judiciário elevou o termômetro do significado da diversidade na composição do segundo grau de jurisdição.
A resistente trajetória pela inclusão de mulheres no acesso aos tribunais está fundada, em primeiro momento, na correção da histórica desigualdade de oportunidades para a promoção de magistradas, seja por merecimento, seja por antiguidade, causadora de normalização de ausência não mais admitida. Em segundo, na busca pela representatividade necessária para legitimação democrática da instituição, até então conduzida por representantes de segmento social específico. Em terceiro, no devido processo legal, traduzido na qualidade da jurisdição prestada aos usuários do sistema de justiça.
No que se refere à diversidade racial e as necessárias interseccionalidades nos tribunais de segundo grau, as citadas pretensões não se realizarão em horizontes próximos. Mulheres negras não seguirão no destino traçado pela nova política judicial afirmativa.
Apesar de o primeiro grau de jurisdição contar com 12,3% de magistrados titulares e com 18,1% de substitutos, negros, o que já revela desproporcionalidade constrangedora em relação à população negra brasileira, os tribunais estaduais, trabalhistas e os federais, contam com apenas 8,8% de desembargadores e desembargadoras negros. Há vários tribunais no país que não contam com nenhuma desembargadora negra, segundo dados do CNJ.
Segundo previsões elaboradas por aquele Conselho, em cenário que considera o crescimento moderado do número de magistrados, seguindo-se com a aplicação da ação afirmativa prevista na res. 203/2015, no ano de 2070 teríamos em torno de 22,8% de magistrados negros. No segundo grau, seriam, segundo a proporção atual, 15,18%. Claro que em projeções de longo prazo as variáveis são numerosas, mas sabidamente nenhuma transversalidade racial nos espera nos próximos anos.
A normalização das ausências nestes espaços sugere a presença de determinada perspectiva do Estado em termos de iguais oportunidades para o acesso a estes cargos, como também ignora a adequada compreensão das demandas por proteção dos direitos das pessoas pertencentes aos grupos sociais subalternizados. Ambas são igualmente rechaçadas pelo caro direito fundamental à igualdade.
Na realidade marcada pela secular exclusão estrutural imposta à população negra, a remoção dessa violência pela via judicial encontra verdadeira opacidade institucional. Hermeneuticamente tratando da questão, é fácil concluir que os horizontes históricos do racismo no Brasil estão fora da estrutura prévia necessária para a compreensão do fenômeno pelo Judiciário, composto por representantes de grupo sem a vivência do problema ou com outros interesses sobre ele, conjuntura necessária prejudicial para a concretização dos deveres constitucionais de construção da sociedade livre, justa e solidária.
Preocupações similares estão sendo discutidas ao redor do mundo conforme revela o estudo de Anita Böcker e Leny de Groot-van Leeuwen (Ethnic minority representation in the judiciary: diversity among judges in old and new countries of immigration, 2004). Informa as autoras que na Inglaterra e no País de Gales, um dos argumentos em favor da diversidade é a legitimidade do processo judicial, a confiança do público no judiciário ficaria ameaçada se o judiciário não for representativo (p. 25). No Canadá, a questão ganhou imenso relevo após a sentença que condenou erroneamente indígena por homicídio. Uma das recomendações da comissão que investigou o caso foi de que membros desse grupo e de outras minorias deveriam ser nomeadas juízes (p. 26). Na Alemanha, a contribuição da experiência específica do imigrante no processo de tomada de decisão judicial também serviria os interesses dos ‘citizen-oriented, contemporary and welfare state-based justice’. Na Holanda, para o Council for the Judiciary, o Judiciário deve refletir a diversidade da sociedade (p. 30).
Barbara L. Graham (Toward an Understanding of Judicial Diversity in American Courts, 10 MICH. J. RACE & L. 153 (2004), analisa a distinção entre descriptive representation e substantive representation. Para autora, representação descritiva se move para além de mera representação nos tribunais. Consistiria numa massa crítica de juízes negros que, por sua vez, estariam mais dispostos a enunciar posições minoritárias enquanto estiverem atuando (p. 159).
Talvez não seja por outra razão que o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, ao especificar a pessoa negra como sujeito de direitos, conforme a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, garante a qualquer pessoa que estiver sob jurisdição dos Estados membros, proteção e recursos efetivos perante os tribunais nacionais e outros órgãos do Estado competentes, garante também o direito a um tratamento igual perante os tribunais ou qualquer outro órgão que administre justiça (art. V, a) e assegura contra quaisquer atos de discriminação racial que, contrariamente à presente Convenção, violarem seus direitos individuais e suas liberdades fundamentais, assim como o direito de pedir a esses tribunais uma satisfação ou reparação justa e adequada por qualquer dano de que foi vítima em decorrência de tal discriminação (art. VI).
No plano regional, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, incorporada pelo Congresso Nacional com status de emenda à Constituição Federal, garante às vítimas do racismo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância um tratamento equitativo e não discriminatório, acesso igualitário ao sistema de justiça, processo ágeis e eficazes e reparação justa nos âmbitos civil e criminal, conforme pertinente (art. 10).
Para garantir a concretização dessa jurisdição qualificada para o atendimento das demandas desses sujeitos específicos, só possível se existente a mencionada representação descritiva acima referida, prevê a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, no art. I, item 4, que não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, [...].
No mesmo sentido, a Convenção Intermericana compromete o Brasil a instituir ações afirmativas para promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos (art. 5) e para proporcionar tratamento equitativo e gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas, em conformidade com o alcance desta Convenção; entre elas políticas de caráter educacional, medidas trabalhistas ou sociais, ou qualquer outro tipo de política promocional (art. 6).
Portanto, a alínea c, do inciso II, do art. 93, que dispõe que a aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade [...], carece de regulamentação no sentido de sejam identificadas e estabelecidas as condições necessárias para que juízas e juízes negros tenham iguais oportunidades para a concorrer ao desembargo, para que o segundo grau de jurisdição tenha representatividade descritiva necessária para observar o devido processo legal na resolução de demandas raciais.