Na próxima terça-feira, dia 26/9/2023, prosseguirá o histórico julgamento do Ato Normativo n° 5605-48.2023.2.00.0000, de relatoria da Conselheira Salise Sanchotene perante o Conselho Nacional de Justiça, que decidirá o destino das ousadas mulheres que decidiram ser magistradas.
O Ato Normativo em referência se propõe a corrigir as distorções de gênero, estruturais e estruturantes, existentes na magistratura brasileira. Em breve síntese, a proposição em destaque pretende promover alteração na Resolução CNJ nº 106 que dispõe sobre critérios de promoção por merecimento da Magistratura de modo a implementar a equidade de gênero nas promoções de magistradas(os) e no acesso aos tribunais, por meio do estabelecimento de ação afirmativa, de caráter temporário, que possibilite o acesso alternado aos cargos, a partir de duas listas de antiguidade (uma mista e uma composta exclusivamente por mulheres) até que seja alcançada a paridade nos tribunais, na proporção de 40% de mulheres e 60% de homens, observado a composição média das(os) membras(os) do Poder Judiciário.
A proposta de modificação normativa não é açodada. Muito pelo contrário. Surge depois de já passados mais de cinco anos da edição da Resolução n°255/2018 que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário, período durante o qual houve férteis estudos e discussões sobre como fomentar substancialmente a participação institucional feminina neste ramo do poder.
Atualmente, de acordo com o Relatório de Participação Feminina no Poder Judiciário, as mulheres compõem 38% da magistratura nacional, enquanto os homens 62%, esses números sofrem algumas variações conforme o ramo judiciário.
No quesito, equidade de gênero, nem mesmo a Justiça do Trabalho passa incólume. Apesar de apresentar maior percentual em termos de equidade de gênero, com 51% de magistradas no primeiro grau, observado o ano de 2022 como referência.
A equidade de gênero encerra-se aqui neste patamar da escada. Nos Tribunais Regionais do Trabalho, as mulheres representam 40%, enquanto no Tribunal Superior do Trabalho apenas 22% das membras(os) são mulheres. No ramo trabalhista, vale o destaque de que no Tribunal Regional do Trabalho do Mato Grosso do Sul não há nenhuma mulher como desembargadora do trabalho.
Adotando-se os dados relacionados aos demais ramos do Poder Judiciário, a participação das mulheres como ministras e desembargadoras alcança percentuais inferiores a 25%, em que pese, no primeiro grau de jurisdição, na Justiça Estadual, Federal e Militar, totalizarem, respectivamente: 40%, 32% e 39%. No âmbito da Justiça Estadual, nos Tribunais de Justiça de Rondônia e Amapá, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região e nos Tribunais de Justiça Militar dos estados de São Paulo e Minas Gerais, tal como no TRT 24ª Região, não há nenhuma mulher como desembargadora.
Quando se analisam os marcadores de gênero e raça, os números são ainda mais impactantes, adotando-se como base o recente Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, no país, há apenas 7,1% de ministras/conselheiras negras e apenas 11,2% de desembargadoras negras, enquanto no primeiro grau de jurisdição, as mulheres negras totalizam 13% dos cargos de juízas titulares e 14,2% de juízas substitutas, o que lhes coloca bem longe dos 38% das mulheres que compõe os quadros da magistratura feminina nacional.
Para ser justa, o ato normativo em debate chega com atraso. Afinal, a Constituição, pedra angular, que deve reger todos os dispositivos infraconstitucionais, em várias de suas passagens, é explicita ao mencionar a expressão “mulher” e a finalidade do uso do termo não é meramente retórica, destaca-o para que não sejam confundidos os direitos e as peculiaridades das mulheres com os do homem, ser universal que serviu e, ainda, serve como medida a vários de nossos normativos.
Esse equívoco interpretativo de pautar o homem, diga-se de passagem, branco, e seus direitos e interesses, como paradigma que reina por tantas décadas, ao arrepio dos preceitos constitucionais encontra-se enraizado também na organização de carreira no Poder Judiciário, desconsiderando-se como dito as diferenças que as (os) Legisladoras(es) Constituintes há 35 anos já constaram.
A falta de equidade de gênero na composição dos cargos superiores não se trata de uma situação exclusiva da magistratura, ao contrário, diversas carreiras que compõe o sistema de Justiça igualmente padecem das mesmas mazelas de dificuldade de progressão na carreira e apresentam distorções semelhantes.
Para tantas de nós, mulheres magistradas e tantas outras profissionais do Direito, seguir uma profissão no sistema de justiça é um caminho repleto de obstáculos, em grande maioria velados, que nos acompanham desde o ingresso na carreira, ante o enfrentamento face a face com o examinador na prova oral ou nas famigeradas entrevistas, etapa ainda prevista em alguns tribunais que se assemelha ao costume patriarcal de “querer saber quais nossas intenções” perante aquela unidade judiciária.
Aprovadas nos difíceis concursos, seguem-se no ambiente institucional os percalços, muitos transvestidos, de um suposto cuidado, que, a rigor só revelam o machismo e a misoginia de um ambiente em que a pluralidade e a inclusão que tanto pregamos para outros foros ainda não se enraizaram e tentam sinalizar que a magistratura não é lugar de mulher, em especial a negra, que sequer teve a oportunidade de tomar assento no plenário do Supremo Tribunal Federal, na condição de ministra, ao longo dos duzentos e quinze anos de sua existência.
O “tributo” do Professor Conrado Hübner Mendes, em seu artigo “Respeitem a aflição de José”1, o “quase-desembargador paulista que estava quase lá por antiguidade, merecimento e masculinidade”, também expressa o sentimento de algumas poucas mulheres que sentem o peso de afastar-se do discurso que foram ensinadas a entoar de defesa da regra de ouro da magistratura: a antiguidade.
Pois era essa até então sua arma defensiva, a única certeza de finalmente avançar na carreira contra possíveis favorecimentos face os obstáculos invisíveis que nos acompanham e podam nossas chances, desde sempre, ao longo do exercício da magistratura: na possibilidade de recusa para uma convocação, para uma fixação em uma unidade judiciária, de uma promoção e de uma remoção já na titularidade e de uma progressão ao segundo grau.
Parafraseando-lhe a crônica, devemos também acalmar as “Marias”, e mostrar-lhes que é hora de refletir sobre tudo o que vivemos e como sofremos, que o lema “no meu tempo era assim”, tão presente para justificar a patriarcal “magistocracia” não mais faz parte do enredo. Que essa festa de violências de gênero veladas acaba quando mulheres ocupam os lugares e assentos que a Constituição, reconhecendo nossas peculiaridades, continua a nos assegurar.
A necessária proposição do ato normativo 5605-48.2023.2.00.0000, acompanhada dos três votos favoráveis até então proferidos demonstram que há caminhos, que é chegada a hora de o Poder Judiciário fazer sua autocrítica, mexer em todas as estruturas, do contrário, ante a manutenção do status quo dos “Josés” e dos tantos “Luíz(s)es” não será possível enfrentar as múltiplas formas de violências diretas e indiretas de que padecem as magistradas.
Por refletir obrigação constitucional, para introduzir a promoção da equidade de gênero no Poder Judiciário, como dito no voto do Ministro Luiz Philippe Vieria de Mello Filho é necessária ousadia, e adiciono: é preciso coragem. Mas, afinal, não é disso que são forjadas essas mulheres que ousaram ser magistradas? Avante Conselheira Salise Sanchotene e mulheres magistradas!
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1 MENDES, Conrado Hübner. Disponível aqui.