A história do Brasil nos mostra que o país passou por uma série de rupturas institucionais ao longo da sua formação, e que sistematicamente escolhe lidar com as cicatrizes abertas do passado através da conciliação, anistia e esquecimento. Isso se comprova pelo fato de que, ao longo do período republicano brasileiro, tivemos 48 anistias – a primeira em 1895 e a última em 1979 –, e muitas delas, para não dizer a totalidade, norteadas pela categoria conciliação.1
Nosso país tem, portanto, indubitavelmente, um problema de memória. E a respeito deste problema, apontamos que os direitos à memória, verdade, justiça e reparação são inerentes à Justiça de Transição2, que objetiva, conforme a doutrina: "processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação".3
Embora reconheçamos certo avanço em matéria de justiça de transição em relação ao período autoritário entre 1964-1985 com a instauração da Comissão Nacional da Verdade (2011), que promoveu o acesso a dados mantidos em sigilo em relação ao período autoritário, o processamento e responsabilização de agentes envolvidos, além de uma série de outras medidas justransicionais, se voltarmos ainda mais no passado, temos um período de violação em massa de Direitos Humanos ainda mais carente de reparação, que é o período da escravidão.
Vige no Brasil, desde a sua fundação e através dos séculos, um acordo implícito de um grupo privilegiado nos aspectos racial, econômico e político que visa a preservação das hierarquias raciais através de um pacto entre iguais, instrumentalizando para tanto, o esquecimento deliberado, a autoanistia e o silenciamento dos grupos subalternizados. Na modernidade, este pacto mantém a nação refém de cicatrizes históricas abertas, que impedem a efetivação do compromisso democrático assumido formalmente pelo Brasil com a promulgação da Constituição de 1988.
A partir da consolidação do mito de que impera no país uma democracia racial, o imaginário coletivo foi capturado em prol de falsas ideias de harmonia e conciliação entre os diferentes povos que compõem a nação brasileira, dando seguimento a um projeto de etnocídio e de epistemicídio de saberes tradicionais, materializando um entrave aos debates necessários a uma (re)construção séria do Estado, além do óbice às políticas de verdade, justiça e reparação pelas violações sistemáticas de Direitos Humanos perpetradas através dos séculos após a proclamação da República Federativa do Brasil.
Atualmente, a ilustração mais gráfica deste perene pacto de esquecimento e impunidade entre iguais é a Proposta de Emenda Constitucional nº 09/2023, que busca conceder anistia a partidos políticos que não cumpriram as cotas mínimas de destinação de recursos em razão de sexo ou raça nas eleições de 2022, além de propor uma cota mínima de 20% dos recursos dos fundos eleitoral e partidário para candidaturas de pessoas pretas e pardas, independentemente do sexo. Esta proposta é um ataque direto contra as já vigentes Emendas Constitucionais nºs 111 e 117, que determinam que os votos dados a candidatas e candidatos pretos e pardos nas eleições sejam contados em dobro para fins de distribuição dos recursos dos fundos entre os partidos políticos, e a aplicação de no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários, respectivamente4.
Bem se vê que a ordem do dia, que une os espectros políticos de esquerda, direito e centro em uma coalizão partidária contra a população negra, é a continuidade do pacto que mitiga a cidadania dos povos negros no Brasil. Há, no entanto, no Brasil real, pleitos que não podem ser ignorados, e são eles:
- maior representatividade nos Poderes da República. Uma mulher negra Ministra do Supremo Tribunal Federal é uma urgência5;
- políticas públicas que efetivem o resgate da memória e da história da população negra, através da preservação de patrimônios culturais, tal qual o Cais do Valongo, que é parte da história e resiste aos diversos ataques e tentativas de apagamento6;
- o improvimento da PEC 09/2023 de anistia, que busca a manutenção dos privilégios da branquitude nas campanhas eleitorais e nas composições partidárias, dificultando ainda mais a viabilização das candidaturas negras;
- a materialização das propostas contidas no relatório da comissão de juristas negros e negras da Câmara dos Deputados para aperfeiçoar a legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país7, e;
- a promoção de medidas que garantam a efetivação da cidadania da população negra no Brasil, concretizando a promessa constitucional de igualdade material.
Parece muita coisa, mas não é nada perto do que o Brasil ainda deve cumprir em termos de reparação por 388 (trezentos e oitenta e oito) anos de regime escravocrata. A realidade nos mostra que sem um acerto de contas e sem a cicatrização destas feridas abertas, não há futuro próspero para o Brasil. A implementação de políticas de preservação da Memória e da Verdade, e promoção de Justiça e Reparação para o povo negro nas mais diversas esferas sociais é necessária. E é tudo para ontem.
__________
1 CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares e a anistia no Brasil: um dueto desarmônico. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (orgs). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. Sao Paulo: Boitempo, 2010.
2 O esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos.
3 VAN ZYL, Paul. Promovendo a Justiça Transicional em sociedades pós-conflito. in Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. – N. 1 (jan. / jun. 2009). - Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 38. Disponível aqui. Acesso em: 15. Set. 2023.
4 BRASIL. Ministério da Igualdade Racial. Nota oficial contra a PEC 9/2023. Disponível aqui. Acesso em: 14.set.2023.
5 Site Ministra Negra no STF. Disponível aqui. Acesso em 14.set.2023
6 Declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2017, o Cais do Valongo é um sítio arqueológico com vestígios do antigo cais de pedra construído pela Intendência Geral de Polícia da Corte do Rio de Janeiro para o desembarque de africanos escravizados. Estima-se que mais de um milhão de negros escravizados tenham passado por ali em 300 anos, tornando o local um marco de extrema importância para a história do Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 14. set. 2023.
7 Relatório final da comissão de juristas destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país. Câmara dos Deputados, Brasília, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 15. set. 2023