Olhares Interseccionais

O pacto para equidade racial e a necessidade de o sistema de justiça olhar para dentro das suas instituições

O Pacto Nacional para Equidade Racial no Poder Judiciário assenta-se em quatro eixos: a promoção da equidade racial no Poder Judiciário; a desarticulação do racismo institucional; a sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário e a articulação interinstitucional e social para a garantia de cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário.

4/9/2023

Nesta segunda-feira, dia 4 de setembro de 2023, o Conselho Nacional de Justiça sediará o II Seminário de Questões Raciais no Poder Judiciário, em que entre os diversos temas tratados, se apresentará o perfil étnico-racial do Poder Judiciário e os quatro eixos do Programa para Equidade Racial no Poder Judiciário.

O Pacto Nacional para Equidade Racial resulta de acordo de cooperação técnica (TCT N. 053/2022) firmado pelo Conselho Nacional de Justiça e o Conselho dos Tribunais Superiores que tem por objetivo o desenvolvimento de programas, projetos e iniciativas, em todos os graus de jurisdição, a fim de combater e corrigiras desigualdades raciais, por meio de ações afirmativas, compensatórias e reparatórias em favor da eliminação do racismo estrutural no âmbito do Poder Judiciário.

O Pacto Nacional para Equidade Racial no Poder Judiciário assenta-se em quatro eixos: a promoção da equidade racial no Poder Judiciário; a desarticulação do racismo institucional; a sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário e a articulação interinstitucional e social para a garantia de cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário1.

De acordo com dados de 28 de agosto de 2023, apesar de 100% de adesão dos Tribunais Superiores, quando considerada a totalidade do Poder Judiciário 91% dos órgãos judiciários aderiram ao acordo de cooperação técnica, sendo 96% dos tribunais vinculados à Justiça Estadual, 93% à Justiça Eleitoral e 79% da Justiça do Trabalho.2

Em 08 de março de 2023, foi editada a resolução 490, que instituiu o Fórum Nacional do Poder Judiciário para Equidade Racial (FONAER), em caráter nacional e permanente, com intuito de elaborar estudos e propostas para o aperfeiçoamento do sistema de justiça, por meio da edição de normativos e a implantação e modernização de rotinas para voltadas a garantir a equidade racial, inclusive nos processos judiciais.

Desde o ano de 2021, a pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário publicada pelo Conselho Nacional Judicial3 já demonstrava para a necessidade de os órgãos jurisdicionais promoverem drásticas mudanças em sua estrutura, a um porque o perfil sociodemográfico na magistratura brasileira atestou que o quantitativo de juízas(es) negras(os) equivalia a apenas 12,8%4 do total de magistradas(os), percentual esse que contrasta flagrantemente com o perfil racial da populacional brasileira composta por 42,8% de brasileiros que se declararam como brancos, 45,3% como pardos e 10,6% como pretos, totalizando 55,90% de pessoas negras5.

 A dois, porque o mesmo estudo aponta que, do total de juízas(es) integrantes de todos os ramos do Poder Judiciário, somente 0,49% foram aprovadas(os) por meio do sistema de cotas raciais, enquanto em relação às(aos) servidoras(es), o sistema de cotas permitiu o ingresso de apenas 0,68%, o que denota que as ações afirmativas relacionadas ao ingresso na carreira ainda não foram suficientemente eficazes para promover mudanças estruturais.6

Nesse particular, merece destaque a Resolução nº 516, de 22 de agosto de 2023, que alterou o §3ºdo art. 2º da Resolução CNJ nº 203/2015 para impor vedação ao estabelecimento de qualquer espécie de cláusula de barreira a candidatas(os) negras(os), sendo bastante o alcance de nota 20% inferior à nota mínima estabelecida para aprovação dos candidatos da ampla concorrência e, em se tratando de concursos da magistratura, o alcance da nota 6,00 para admissão nas fases subsequentes.

A três, porque mantido o compasso atual, para atingir o parâmetro de inclusão de 22,2%, o que ainda se distancia substancialmente do perfil racial da população brasileira, serão necessários aproximados 33 anos, o que desvela, portanto, que mantidas as regras de ingresso e permanência atuais, o Poder Judiciário precisará de três décadas para atingir um percentual que, como destacado, ainda assim não representará a face da população brasileira, composta majoritariamente por pessoas negras.

A quatro, porque, enquanto expressão da sociedade, não se pode olvidar que nos espaços dos órgãos jurisdicionais sejam encontradas práticas enquadradas como racistas, a exemplo da modalidade individual, praticada por seus pares e por terceiros que acessam o sistema de justiça, e da forma institucional, que as práticas cotidianas e as disposições administrativas implícitas impedem que juízas(es) e servidoras(es) negros de ascender a postos para os quais são qualificados, em nítida assimilação interna do chamado pacto da branquitude7 que igualmente estrutura e contamina as relações administrativas travadas no âmbito dos tribunais, prova disso revela-se pela baixa representatividade de pessoas negras no âmbito dos tribunais, nesse particular, merece o destaque de que até o presente momento não tivemos nenhuma ministra negra no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

A partir das métricas apontadas, é inequívoco que a promoção da Equidade Racial no âmbito do Poder Judiciário é pauta urgente e indispensável para dar concretude aos princípios fundamentais assinalados na Constituição Federal, bem como aos compromissos internacionais de que o Brasil é signatário, a exemplo da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação e Formas Correlatadas de Intolerância e a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação racial.

Em remate, enquanto magistrada negra, inserta nesse microcosmo social que é o Poder Judiciário, destaco as palavras de Ariano Suassuna8:

"Não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança. Sei que é para um futuro muito longínquo. Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo todo"

Com mais essa edição do Seminário de Questões Raciais no Poder Judiciário, intitulo-me como "uma mulher da esperança" de que as questões raciais continuem como pauta prioritária nas ações jurisdicionais, assegurando-se a democratização nos órgãos judiciários, em todos os graus e que persista o intransigente combate a todas as formas de discriminação, de preconceito e de outras expressões da desigualdade de raça no País, em respeito à Constituição Federal e aos compromissos internacionais de que o Brasil é signatário.

__________

1 Conselho Nacional de Justiça. Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Disponível aqui. Acesso em 30 ago. 2023.

2 Conselho Nacional de Justiça. Adesão dos Tribunais. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023.

3 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2021.

4 Conselho Nacional de Justiça. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2021.

5 IBGE. Características gerais dos domicílios e dos moradores 2022. Disponível aqui. Acesso em 22 ago 2023.

6 Conselho Nacional de Justiça. Painel para Avaliação da Diversidade de Raça/Cor dos Funcionários dos Tribunais. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023.

7 BENTO, Cida. O Pacto da Branquitude.Companhia das Letras: São Paulo, 2022.

8 Frases de Ariano Suassuna. O pensador. Disponível aqui. Acesso em 30 ago 2023.

 

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.