"(...) ‘Stamos em pleno mar...
Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...
(...)
Donde vem? onde vai?
Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
(...)
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
(...)
O navio negreiro – Castro Alves
Calunga grande, meu destino, revela ao meu coração clandestino, por que, mesmo nas profundezas do seu abismo, somos, ainda assim, vítimas de tamanho cinismo? Se é verdade que “em vida nos distinguimos, mas na morte somos todos iguais” (Chuang Tse), por que é tão seco o pranto que rega a nossa eterna desgraça fugaz?
Proveniente da palavra bantu kalunga – que pode ser traduzida como “espaço oco” –, o termo Calunga, dentre os diversos significados que lhe podem ser atribuídos, assume sentido associado ao luto, ao “vazio por dentro” deixado pela partida de entes queridos. Com o sistema escravocrata da Modernidade, sobretudo a partir do século XVI, embarcar em um navio negreiro era o mesmo que ser tragada/o pelo “mar sem fim”, o grande cemitério marinho que passou a ser chamado de Calunga Grande pelas famílias africanas que testemunhavam seus parentes partirem.
Até hoje, nos contos (des-en)cantados por velhas vidas que habitam Aruanda – e que trazem inscritas em suas almas, outrora desprovidas de valor humano, experiências e lembranças do balanço dos tumbeiros e da terra-vida que no horizonte se perdia –, o Oceano Atlântico é chamado de Calunga Grande, em virtude do número incomensurável de corpos negros que lá jazem. A cifra negra que a branquitude ignora demonstra que essas vidas ainda não têm valor, não importando o quanto os ecos do passado mais que presente gritem o contrário.
Recentemente, dois trágicos acontecimentos – separados por alguns dias e pelo paradoxo da (des)importância das vidas/mortes – revelam que, ao contrário do que nos diz Castro Alves em seus versos sublimes, o berço e a origem dos nautas determinam a quem é reservado o palco e a quem sobra a coxia, no horrendo espetáculo das travessias fatais.
Já era noite do dia 8 de junho de 2023, quando o barco pesqueiro Adriana partiu da costa da Líbia, avançando Calunga Grande adentro, com destino (in)certo rumo à costa italiana. A bordo homens, mulheres e crianças; famílias inteiras, outras, divididas pela (des)esperança de (sobre)viver. A minúscula embarcação não era capaz de abrigar a enormidade dos sonhos das 750 pessoas, cujos nomes, rostos, histórias e vidas parecem não importar. A viagem era longa; maior ainda a ânsia de fugir da fome, da miséria, do desemprego, do desalento. Foram cinco dias e seis noites, até a madrugada profunda do dia 14 de junho, quando não se sabe quantos corpos foram engolidos pela imensidão do mar sem fim. Uma das mais mortais tragédias em alto mar da história recente do Mediterrâneo não mereceu sequer um décimo da atenção dada pelos meios de comunicação ao acidente que se sucedeu a seguir, em outros mares.
Quatro dias depois, em 18 de junho de 2023, teve início a saga do submersível Titan que, saindo do Canadá, realizava uma viagem turística com uma tripulação de cinco milionários. Seus nomes, rostos, fortunas e trajetórias estão estampados em matérias jornalísticas de todo o mundo. Cada tripulante pagou US$ 250 mil pela expedição de oito dias, para visitar os destroços do famoso navio Titanic que, naufragado em 1912, está localizado a 3.800 metros de profundidade, no Oceano Atlântico. Milhões de dólares foram gastos na megaoperação de resgate promovida pelas Guardas Costeiras do Canadá e dos Estados Unidos da América, desde o desaparecimento da embarcação, cerca de uma hora e 45 minutos após o início do mergulho, quando esta perdeu contato com a base. No dia 22 de junho, a OceanGate Expeditions, empresa responsável pela expedição, confirmou a morte dos cinco tripulantes, no que teria sido uma catastrófica implosão do submarino, em virtude de problemas técnicos.
Informações sobre a expedição ao Titanic e sobre os excêntricos turistas a bordo do Titan, mesmo dias após os fatos, continuaram ocupando de modo obsessivo os jornais, os noticiários televisivos e os portais eletrônicos do mundo inteiro, com detalhes a respeito da viagem milionária, das famílias e dos interesses dos aventureiros.
No caso do barco pesqueiro, não houve preocupação com os perfis dos náufragos e sobreviventes, tratados não como indivíduos protagonistas de suas próprias trajetórias, mas como uma massa amorfa de indesejáveis. Não têm nomes, rostos ou imagens. Suas histórias não são dignas de serem contadas; suas ausências não serão sentidas pela sociedade, suas mortes não comovem nem provocam piedade. Afinal de (tantas e incontáveis) contas, não valem um vintém; são apenas imigrantes, clandestinos sem destinos, refugiados refugados.
O curto espaço temporal entre os dois eventos escancarou a diferença no tratamento dado a estes, o que diz muito sobre as pautas que a mídia escolhe visibilizar; sobre as histórias que a História decide não contar e sobre as vidas com as quais a sociedade resolve se importar.
Nesse contexto, é inevitável lembrar da seletiva consternação mundial diante dos horrores do holocausto judeu. Nesse sentido, Aimé Césaire chama atenção para o pseudo-humanismo, baseado numa visão racista dos direitos humanos. Para ele, o que é imperdoável no nazismo hitleriano não é o crime em si, mas o abominável crime contra o homem branco; ou seja, a inaceitável aplicação aos brancos europeus dos processos de extermínio colonialistas praticados até então apenas contra indianos, amarelos e negros (CÉSAIRE, 2020, p. 18).
Já o holocausto negro, maior crime já cometido contra a humanidade – e que segue definindo a (des)importância de certas vidas até os dias de hoje – não gerou indignação internacional tampouco indenização aos seus descendentes, não sendo suficiente para provocar a aprovação de (nenh)uma Declaração Universal dos Direitos Humanos.
É também Aimé Césaire, em seu Discurso sobre o colonialismo, quem nos alerta sobre a tríade colonialismo-racismo-capitalismo, fenômenos indissociáveis que se consolidam como maldita herança da Europa – ainda incrustrada nas sociedades do século XXI –, cuja hipocrisia coletiva pretendeu uma inconciliável associação entre colonização e civilização (CÉSAIRE, 2020, p. 9).
A partir da sistematização (i)lógica da colonização desumanizante – germe do sistema racial capitalista da atualidade –, a cruz/fardo do homem branco1 nos (a)fundou no mito civilizatório dos povos não europeus, ideologia salvacionista que, na verdade, serviu de instrumento de controle sacralizado, imprescindível ao imoral desenvolvimento da Europa. A humanidade dicotômica colonial era dividida em europeus e não europeus, superiores e inferiores, racionais e irracionais, civilizados e selvagens, humanos e sub-humanos, nós e os outros. As profundezas da desumanização dos outros são, entretanto, desenterradas com um mergulho nas águas rasas dos discursos “igualitários”.
Desse modo, a racionalidade humanística, com suas luzes monocromáticas, ofuscou a seletividade dos princípios das revoluções liberais, apenas válidos quando aplicados em solo europeu. Nesse jogo de cartas (ainda) marcadas com sangue e suor dos povos subalternizados, a regra básica da segregação construiu territórios (de)limitados como “zonas do não-ser” (FANON, 2008, p. 26), aprisionados fora dos limites da “civilização”, condenados à sentença de morte da miserabilidade humana.
É preciso abandonar o “barco furado” do discurso do universalismo igualitário para salvar a humanidade do contrato social que é, em verdade, um contrato racial que nos acorrenta a desigualdades e opressões interseccionais, ancoradas na supremacia branca global, base do sistema político-econômico do atual “mundo moderno”. Esse contrato racial opera como um elo entre dois mundos contrapostos: de um lado, o convencional, de caráter moral, preocupado com a discussão sobre justiça e direitos (the white world); do outro, um mundo de opressão e exploração (a)moral, no qual esses valores não são aplicáveis (MILLS, 1997).
Os impactos da escravidão e do colonialismo na história da África – que se estendem à quase totalidade das colônias europeias e ao denominado Terceiro Mundo – são analisados pelo historiador e um dos líderes do panafricanismo, Walter Rodney, ao argumentar que o subdesenvolvimento africano não é um fenômeno natural, mas sim resultado da exploração imperial do continente pela Europa. Segundo o autor, a África desenvolveu a Europa na mesma proporção em que a Europa subdesenvolveu o continente africano, por meio da exploração de suas riquezas, povos e regiões, inicialmente como fornecedores de mão de obra escravizada e, em seguida, com mão de obra assalariada extremamente subvalorizada.
Voltando os olhos para a atualidade, nota-se que, em todas as sociedades fundadas a partir desse passado (presente) colonial, vidas indignas ainda naufragam na busca pelo reconhecimento de suas humanidades, afogando-se nos sombrios efeitos da coisificação de seus corpos, da usurpação de suas riquezas, da desvalorização de suas potencialidades.
O negacionismo cínico ainda impera entre os Estados que enriqueceram às custas do sangue e suor de outros povos, cujas vidas insistem em desprezar. Mundo afora, são os mesmos corpos que continuam pagando a conta desse contrato racial unilateralmente assinado, enquanto as elites brancas seguem mamando nas fartas tetas do capitalismo racista.
A radical imposição do capitalismo como único futuro possível das sociedades contemporâneas relega à África e aos países subdesenvolvidos a eterna posição de náufragos sem destino, condenados à pobreza que alimenta a sanha acumulatória da Europa branca. Como nos lembra Angela Davis (RODNEY, 2022, p. 13), não se pode vislumbrar o desmantelamento desse sistema de exploração/coisificação de determinadas pessoas e territórios, enquanto as estruturas racistas se mantiverem intactas.
No entanto, os rumos da história parecem indicar que a Europa – moral e espiritualmente indefensável e responsável pela maior pilha de cadáveres de todos os tempos (CÉSAIRE, 2020, p. 26) –, indiferente à pobreza alheia, que ela própria criou para forjar sua riqueza, seguirá empilhando incontáveis corpos nos mares e oceanos, guiada por fúnebres (en)cantos capitalistas.
Aquelas/es que, hoje, arriscam-se em precárias embarcações para adentrar territórios de países europeus parecem estar em busca de tudo aquilo que, por séculos, a Europa lhes roubou da maneira mais vil e cínica que se possa imaginar, inclusive sua própria dignidade. Enquanto isso, o rico (ou enriquecido) continente europeu vira as costas para suas responsabilidades históricas, para os povos que foram por ele empobrecidos e que, de um modo ou de outro, por bem ou por mal, cobrarão essa dívida.
Que Calunga Grande – em sua paradoxal força/movimento, portal de chegadas e partidas, lugar de perecimento e renascimento –, em sua imensidão, seja horizonte para gestar a nossa igualdade, em vida e na morte.
Referências bibliográficas
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Tradução de Claudio Willer. Ilustração de Marcelo D’Salete. Cronologia de Rogério de Campos. São Paulo: Veneta, 2020.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
MILLS, Charles. The Racial Contract. Nova York: Cornel University Press, 1997.
RODNEY, Walter. Como a Europa subdesenvolveu a África. São Paulo: Boitempo Editorial, 2022.
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1 Para recordar o poema The White man’s burden (O fardo do homem branco), publicado em 1899, pelo poeta britânico Rudyard Kipling e que ficou conhecido como uma ode ao imperialismo. O poema aborda o fardo do homem branco como a árdua civilizatória dos selvagens e tristes povos negros, “metade demônio, metade criança”. No poema, cabia ao generoso homem branco a tarefa de enfrentar as “guerras selvagens pela paz, de encher a boca dos famintos, de cessar as doenças”.