A minha estreia numa coluna de olhares interseccionais será sobre minha mãe na Suprema Corte. Por falar em interseccionalidade, como a doce palavra mãe neutraliza uma existência, parece nem ser de uma pessoa que falamos, é algo sagrado, embora a concepção mãe resuma e anule todo o ser. Não é apenas minha mãe, é uma mulher, negra, de origem pobre, com ensino fundamental incompleto, e hoje, idosa.
Trabalhou boa parte de sua vida como doméstica numa fazenda, ao que consta por ser a esposa do capataz, meu pai, seu trabalho não teve a necessidade de ser remunerado. Um não ser para aquele mundo do trabalho, e por que não dizer para os vários outros. Não a deixaram existir, mas agora será alçada ao Supremo Tribunal Federal.
Pode parecer um passado longínquo, de violências superadas, não para as mulheres negras, pobres e trabalhadoras, embora a Constituição de 1988 tenha centralizado a dignidade das pessoas, em especial de grupos em situação de vulnerabilidade, no fundamento do Estado de Direito brasileiro.
A democracia foi conquistada. Os direitos, inclusive os sociais, foram reconhecidos e em certa medida concretizados. Mas, há pessoas do lado de fora da festa. Não apenas pelo fator da escassez, mas pela reprodução cada vez mais sofisticada de silenciamentos e apagamentos de sujeitos, em particular a mulher negra. Os espaços de poder comprovam essas ausências, normalizadas. De norte a sul, do primeiro ao último tribunal, magistradas negras são raridade. A jurisdição não é delas e nem para elas, afinal majoritariamente violentadas, pouco proteção judicial encontram.
Designado constitucionalmente para resguardar os direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal é genuinamente uma corte para minha mãe. Uma mulher negra na Corte, minha mãe, com seu passado, presente e futuro. Vidas e horizontes esquecidos agora no mais importante tribunal do país.
Só assim você terá existido lá naquela fazenda, mãe! A sua história será reescrita, a sua e a de outras Rosas negras. Você estará no Supremo! A dignidade do seu trabalho vive, sua liberdade existe, sua paz está aqui, sua dignidade está salva. Sua condição de mulher e a sua negritude não te apagam, reinventam a justiça da Corte.
Minha mãe no Supremo é a completude da democracia, no seu paradoxo contramajoritário, ainda carente das experivivências negras das mulheres, tão necessárias para uma jurisdição que faz cumprir as promessas constitucionais de igualdade, promessas de rompimento das subalternidades, das não existências.
Dar concretude ao constitucionalismo com a adoção de postura interpretativa geral e abstrata, às vezes até com tentativa de neutralidade, além de ser um engodo terrível, é silenciar as já constituías ausências normalizadas nos espaços os quais se possa produzir a inclusão para a igualdade. Constitucionalismo para “pessoas” é para o homem branco, para "mulheres" é para a mulher branca, para a mulher negra, apenas se houver a postura interpretativa que especifique este sujeito de direitos.
No plano global, a existência da mulher negra é especificada para o direito após a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (ratificada em 1969) e Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (ratificada em 2022) não terem pronunciado uma só vez a expressão "mulher", da mesma forma que Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, não pronunciou "mulher negra" ou algo que equivalha ao reconhecimento de que a discriminação contra a mulher se avoluma quando o fato raça é atravessado. Por acaso minha mãe não é uma mulher?
É na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - "Convenção de Belém do Pará" (1996), no art. 9, que aparece a minha mãe, ao dispor que para a adoção das medidas que visem erradicar a violência contra as mulheres, os Estados partes levarão especialmente em conta a situação da mulher vulnerável a violência por sua raça. Interseccionalidade ignorada na construção da identidade do nosso sujeito constitucional, da identidade da nossa Corte Suprema.
Por um constitucionalismo feminista que não escape do fator raça, da negritude. Um constitucionalismo para minha mãe, para as outras Rosas, impregnado pelas ideias de Lélia González, quem tanto buscava pelo lugar da mulher negra na luta contra as múltiplas opressões. Minha mãe no Supremo Tribunal Federal, este é o lugar!
Como interpretar o texto constitucional se os horizontes históricos que retratam a aniquilação dos corpos negros femininos não integram o elemento pré-compreensivo da Corte? Se não há interpretação sem antes o intérprete compreender o mundo, inclusive interpretar a si mesmo neste mesmo mundo, os significados se distanciam dos significantes. Uma interpretação apenas de e para pessoas iguais perante a lei não é para minha mãe e nem para as outras Rosas negras.
Pelas mentes e mãos de homens e de apenas três mulheres, brancas, até aqui, é que o direito à liberdade, à privacidade, à religião, à moradia, ao trabalho, à educação e à segurança da minha mãe e das outras Rosas negras foi "dito", considerando seus horizontes históricos de existências apenas no imaginário, talvez até com certa empatia, mas não integrados ao processo hermenêutico institucional por quem os carrega. Minha mãe nunca esteve na Corte. Minha mãe precisa estar lá por todas as outras Rosas negras, de todas as idades, classes, credos, desejos e origem.
Para além dos importantes e positivos aspectos que a representatividade proporciona em termos de legitimidade, minha mãe será mais que convidada para festa, se sentará à mesa, tomará parte do banquete, será uma mulher negra no Supremo, será a jurisdição que diga o direito a respeito si, da sua trajetória, do seu modo de ser, da sua vida negra, e claro, de todas as outras Rosas negras. Ela buscará cumprir as promessas constitucionais da igualdade, pensando como uma jurista negra.
Minha mãe no Supremo, pelos braços, mentes e corações de outras Rosas Vilmas, negras.