Olhares Interseccionais

Gol de racismo – "Separados, mas iguais": De Rosa Parks à Samantha Vitena

28 de abril de 2023, Samantha Vitena, professora de inglês, Mestranda em Saúde Pública, mulher negra, saiu do anonimato de maneira brutal.

2/5/2023

"Meus pés estavam doendo, e eu não sei bem a causa pela qual me recusei a levantar.
Mas creio que a verdadeira razão foi que eu senti que tinha o direito de ser tratada de
forma igual a qualquer outro passageiro. Nós já havíamos suportado aquele tipo de tratamento durante muito tempo
.
Estava cansada de ser tratada como uma cidadã de segunda classe"

(Rosa Parks)

1º de dezembro de 1955, Rosa Louise McCauley Parks, costureira afro-americana estava sentada dentro de um ônibus de Montgomery, em plena época de segregação racial nos EUA e foi intimada a levantar para dar lugar a um passageiro branco.

Ao recusar-se a levantar, a polícia foi acionada pelo motorista do ônibus e Rosa Parks, presa. Pioneira na luta pelos direitos civis, Rosa causou um levante contra a segregação, na Comunidade negra dos EUA. “Estamos cansados de ficar segregados e humilhados. Não temos alternativa a não ser protestar”, exclamou o pastor Martin Luther King Jr.

Durante aproximadamente 381 (trezentos e oitenta e um) dias, houve boicote aos transportes coletivos. Homens e mulheres negras aliaram-se à luta e não utilizavam os ônibus. Em lugar disto, caminhavam, em protesto, das suas casas aos trabalhos e vice-versa. Caminhavam por dignidade, por reconhecimento, pelo fim da segregação. Em 1956, a Suprema Corte declarou a ilegalidade da segregação racial em locais públicos. O "não", de Rosa Parks, fez história. 

28 de abril de 2023, Samantha Vitena, professora de inglês, Mestranda em Saúde Pública, mulher negra, saiu do anonimato de maneira brutal. Sim, não basta que os nossos corpos negros jorrem sangue pelo chão dessa pátria mãe nada gentil para sentirmos na pele a força da brutalidade do racismo à brasileira. As ações e omissões também nos expõem e vitimizam.

No dia 29, o vídeo do escárnio contra Samantha e contra todas nós, mulheres negras, foi divulgado. Uma mulher altiva, questionava sobre o seu direito de estar, de permanecer, de merecer cruzar a ponte aérea Salvador-São Paulo, em um transporte aéreo. Tal qual Rosa Parks, em 1955, Samantha, disse "não". Não ao abuso, não à segregação, não ao racismo operado pela Companhia aérea.

Um corpo que resistiu e não se calou diante de tamanha atrocidade. Um corpo que protestou e ultrapassou todos os limites a ele impostos pelo imaginário da branquitude: sim, uma mulher preta tem que estar no lugar de subserviência, calada. A sua mala tinha que ser transportada como eles quisessem e não como mandam as normas.

No caso, ainda que o notebook estivesse dentro da bagagem de mão e a própria companhia aérea no site oficial divulgue que "Seu laptop só poderá ser transportado somente como bagagem de mão", a de Samantha, seria despachada. Como houve protesto, Samantha também foi despachada por agentes da Polícia Federal, para longe do voo 1575 da Gol, por "medida de segurança" e por ordem expressa do Comandante.

De acordo com o artigo 168 da lei 7565/1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro da Aeronáutica, "o Comandante exerce autoridade sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo da aeronave e poderá: I - desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e bens a bordo".

Eu prefiro deixar que vocês, leitoras/es tirem as suas próprias conclusões sobre o comando, obedecido pela Polícia Federal, à ordem da autoridade a bordo da aeronave. Isto porque, a jornalista Elaine Hazin, que também estava no voo, relatou em entrevista a um jornal local:

Logo que eu entrei, tinha uma mulher branca em minha frente que ela 'tava com 3 (três) bagagens de mão, três! E ela acomodou as 3 (três) bagagens de mão dentro do compartimento, mesmo a tripulação falando pra ela: "senhora, por favor, bote uma bagagem embaixo do assento". E ela falou: "não vou botar, eu vou botar minha bagagem aqui em cima"! E essa senhora colocou a bagagem dela em cima, as 3 (três) bagagens e a mulher negra não colocou nenhuma.

O relato da Elaine traduziu o desespero: "Meu coração está sangrando neste momento. Presenciei agora à noite um caso extremamente violento de racismo, sofrido por uma mulher negra no voo 1575 da Gol, chamada Samantha. Eu me desespero, todas com muito medo, apreensão e os policiais ameaçam algemá-la. Não dizem a razão de levá-la presa, só que foi uma ordem do comandante".

Eu fugi o quanto pude das redes sociais, não aguentava mais assistir ao vídeo e sentir a dor de Samantha. Sobretudo, porque 90% das vezes em que viajei de avião, estava sozinha. Sobretudo, porque o medo tomou conta de mim. Sobretudo, porque os nossos corpos são invisibilizados no percurso e não nos dão o direito de existir.

Mas, conforme nos ensinou Rosa Parks, “Você nunca deve ter medo do que está fazendo quando está certo”. Que a sua semente continue a florescer e que nós, mulheres negras e homens negros sejamos pontes para o boicote à toda e qualquer empresa que ganha dinheiro de preto, mas se acha no direito de vilipendiar os nossos corpos.

"Irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo.  Ladrão. Então peguemos de volta o que nos foi tirado, mano, ou você faz isso ou seria em vão o que os nossos ancestrais teriam sangrado". Djonga

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.