Feminicídio é o tipo penal ( não autônomo) que agrega em sua essência o marcador de gênero como requisito necessário para qualificar circunstância que envolve a prática de homicídio. A lei 13.104/2015 inseriu o inciso VI no § 2º do CPB e foi recepcionada com bastante debate e críticas na comunidade jurídica, sobretudo pelos estudiosos de criminologia que não defendem o punitivismo como solução para a prevenção das ocorrências delitivas.
Passados tanto anos após a inserção desta qualificadora, há, ainda, quem creia que o homicídio praticado cuja a vítima seja uma mulher seria simplesmente o suficiente para caracterizar a ocorrência do feminicídio. Contudo, para avaliar a prática delitiva que envolve o feminicídio, é preciso debruçar-se sobre o estudo do conceito de gênero, como marcador da relação de poder e dominação do homem pela mulher, em razão de motivações que envolvem o desprezo pela condição de mulher ou a existência de violência doméstica e familiar.
Crimes passionais deixam de ser avaliados sob a ótima emocional, para terem sobre si as lentes de gênero, com análise do contexto social e cultural que envolve práticas opressivas ligadas ao machismo e patriarcado.1
Nesse contexto, o homicídio deve estar agregado dessa característica que envolve a relação de poder de subjugação do homem pela mulher, o que não necessariamente desafia que exista uma relação amorosa prévia para caracterizar a ocorrência.
Dito isso, os números de feminicídio nos últimos anos revelam dados que traduzem um pouco da nossa estrutura desigual e patriarcal, bem como a ineficácia de medidas criminalizadoras para o enfrentamento a violência de gênero.
O último levantamento do Fórum de Segurança, realizado no primeiro semestre de 2022, informa que houve um aumento de 10 por cento nas ocorrência de feminicídio nos últimos quatro anos, de maneira progressiva.2 Tal progressão coincide com um período delicado vivenciado pela nossa sociedade, em que demandas ligadas ao gênero tiveram arrefecimento no que toca a proteção das mulheres como política de governo.
Segundo dados levantados, 68,7% das vítimas de feminicídio tinham entre 18 e 44 anos; 16% delas tinham entre 18 e 24 anos; 12,3% entre 25 e 29 anos; 14,4% entre 30 e 34 anos; 15,2% entre 35 e 39 anos;10,8% entre 40 e 44 anos; 62% eram negras; 37,5% brancas 0,3% amarelas, 0,2% indígenas; 81,7% das vítimas foram mortas pelo parceiro ou ex-parceiro íntimo.
Os números levantados apontam, de igual modo, que houve uma queda no número de feminicídios cujas vítimas são mulheres brancas. No entanto, as mulheres negras seguem sendo as maiores vitimadas, conforme os levantamentos estatísticos.
Este desalinhamento apontado por tais dados revela-se sintomático e desafia uma reflexão sobre os fatores que concorrem para tal diferença na evolução dos números.
Os dados denunciam que a rede de proteção e acesso à Justiça não estaria tão disponível para as mulheres negras. As perguntas que se devem fazer é: O que faz essa categoria de mulheres serem as maiores vitimadas? O que faz haver menor proteção da rede multidisciplinar de atenção?
O racismo estrutural pode ser um dos fatores para que mulheres negras não possuam tanto acesso e facilidade para ter as suas demandas acolhidas junto às autoridades públicas.
Nos últimos quatro anos, a política de governo ainda desestimulou o debate sobre gênero, bem como o enfrentamento a violência decorrente. Observe-se que a própria nomenclatura para a designação do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) sinaliza um caráter conservador das abordagens de políticas públicas para mulheres.
O governo anterior ao atual, durante os quatro anos de gestão, propôs para Orçamento da União 94% menos recursos para políticas específicas de combate à violência contra a mulher do que nos quatro anos anteriores. Estes números fazem parte do levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)3 que informa que entre 2020 e 2023, foram indicados R$ 22,96 milhões para políticas de enfrentamento à violência contra a mulher. Nos quatro anos anteriores, esses recursos chegaram à marca de R$ 366,58 milhões.
Tais recursos deveriam ser utilizados em diversas frentes de enfrentamento a violência doméstica, a exemplo do fortalecimento da rede multidisciplinar de proteção prevista na Lei Maria da Penha, que engloba parcerias com instituições públicas e privadas, com o objetivo de prestar acolhimento psicológico, social e assistência jurídica.
Segundo nota técnica produzida pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em relação aos recursos investidos pelo Governo Federal para o enfrentamento dessa situação, em 2022, R$5 milhões foram destinados ao combate à violência contra mulheres, tendo sido este o menor repasse de recursos dos últimos quatro anos.
A politica de fortalecimento da cultura armamentista foi outro fator ligado a política de governo dos últimos quatro anos, que pode ter colaborado com o aumento dos índices de óbitos de mulheres vitimadas por violência doméstica.
É importante ponderar, ainda, que neste período avaliado, a pandemia de Covid-19 foi um fator determinante para um aumento de subnotificação de vários crimes, dentre eles aqueles relacionados às opressões de gênero. Ademais, a pandemia desarticulou algumas redes de proteção, com a mudança estrutural na rede de atendimento das instituições públicas, que durante um tempo significativo do período de isolamento social mais crítico adotaram a prática de atendimentos exclusivamente virtuais.
Movimentos sociais e organizações da sociedade civil também sofreram arrefecimento nas suas atividades e uma certa desmobilização nas atuações de pressão e cobrança aos órgãos públicos.
Projetos do governo Federal nominados de Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio e o Plano Nacional de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra a Mulher na Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social, jamais foram implementados, efetivamente.
Neste contexto, após vivenciar o turbilhão de retrocessos dos últimos anos, nosso país possui um grande desafio que é minorar os danos do enfraquecimento do combate a violência de gênero, não apenas o feminicídio aumentou, mas outras formas de violência de gênero e misoginia explícita ganharam espaço e legitimidade durante este período nefasto.
Deve haver um necessário compromisso na reconstrução deste país pelos próximos governantes, com o compromisso sério com a proteção da vida das mulheres, através da construção de políticas públicas focadas com um olhar sensível para as opressões de gênero, sem descuidar das abordagens interseccionais de raça e classe.
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1 Mendes, Soraia da Rosa.Criminologia feminista: novos paradigmas- 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2017.