Olhares Interseccionais

8 de janeiro e os branco-golpistas: Como o racismo organiza e sustenta a democracia brasileira

Vinícius Assumpção comenta os atos branco-golpistas e o privilégio de não ser negro no Brasil.

16/1/2023

Não importa o que o preto porta
Pele preta é porta
Pra porrada, pro porrete, pro projétil
Polícia prende
Policia preme
E pode até pisotear
Porte o preto o que portar
Precisa apenas ser preto

Vinícius Assumpção

Cena 01. Dierson Gomes da Silva foi enterrado no cemitério da Pechincha, doída ironia para alguém cuja vida tem valor nenhum – aos olhos do Estado. "Portava" um pedaço de madeira pendurado numa bandoleira, instrumento afetivo que lhe acompanhava e ajudava a lidar com a dura realidade de trabalhador da reciclagem, me permito supor. Sentindo-se ameaçada durante mais uma operação "contra o tráfico" na Cidade de Deus, a polícia (e tanta gente antes; tanta gente depois) puxa o gatilho e mata Dierson, atirando pelas costas. Difícil não recordar que outros artefatos igualmente perigosos já foram confundidos com armas letais e despertaram a pronta reação policial; foram eles: vassoura, macaco hidráulico, furadeira, skate, guarda-chuva, e muleta1.

Como toda tragédia é pouca pra nosso povo, o atestado de óbito de Dierson foi emitido sem carimbo ou assinatura médicos2; assim, o sepultamento, adiado pelo descuido e descaso, coincidiu com o aniversário do seu filho mais velho, que lamentou a perda: "Eu sinto dor, não sei explicar a dor que sinto. Tudo que um filho espera é passar o aniversário com os pais. E tiraram isso de mim, mataram meu pai por um pedaço de madeira". Sua outra declaração é um lugar-comum entristecedor que expõe a violência sistemática que nos abate: "Fizeram uma covardia dessas com um homem que nunca teve envolvimento nenhum. Ele ainda estava de costas"3. É a rotineira e injusta explicação que precisamos dar, contando, na mídia sensacionalista que não enxuga nossas lágrimas, que mais uma pessoa preta vitimada pela polícia era inocente, não tinha passagem, não tinha antecedentes. Lida do avesso, a mensagem é que, se fossem ligadas ao crime, a execução seria seu destino certo - embora a pena de morte seja formalmente vedada no Brasil.

Cena 02.  Vestem um verde e amarelo incompatível com a exortação renitente à nação estadunidense e aos seus vínculos genealógicos com a aristocracia italiana, portuguesa, espanhola e afins. Dizem ser patriotas e assim marcham, pelas vias públicas, exclamando "Deus, Pátria, família e liberdade", uma mescla de lema integralista, que deveria causar alarde e preocupação, com pedido de salvo-conduto - prontamente atendido pela Polícia Militar. Ela que os permitiu caminhar despreocupadamente pelo plano-piloto; mais: os escoltou e assegurou tranquila chegada a seu destino4. Houve, inclusive, agentes da lei – tão estruturalmente condicionados à repressão viril - que pararam para conversar e fotografar os "manifestantes"5.

Os três Poderes foram atingidos violentamente, imagética e materialmente. Como se não bastasse, em si mesma, a nefasta simbologia da invasão ao Planalto e ao Congresso, a turba fez questão de depredar Cavalcanti, Giorgi, Brecheret..6. "A crise é também estética", não há dúvidas. E no Supremo Tribunal Federal, confirmando que o bordão "Deus acima de tudo" sempre foi um conclame autoritarista, e não uma declaração de fé, arrancaram até mesmo a imagem de Cristo. Cidadãos de bem acima de tudo.

Em terra de "bandido bom é bandido morto", é a cor da pele que dita quem pode morrer. Este arremedo de democracia em que estamos imersos - bom a ponto de não querermos pior e insuficiente para a dignidade do viver negro - esteve exposto (uma vez mais) no último 8 de janeiro. Os  cidadãos de bem, figura mitológica tão presente, tripudiaram das "sólidas instituições", ostentando ao mundo o manto da imunidade que acompanha o ser branco. A novidade está no extremo, no acinte supremo, na prepotência de saberem-se acima da lei mesmo quando não há argumento que justifique seus atos de vandalismo, depredação, tentativa de ruptura com o Estado democrático. Puro capricho e demonstração de força.

Clamarão por direitos humanos e o escárnio estará também aí, em usufruírem daquilo a que são contrários, ao que dizem ser "cartilha dos bandidos", "benefício aos comunistas" e outros espantalhos retóricos que quase escondem suas vísceras autoritário-racistas. Os socorrerá o privilégio de serem vítimas7, de se dizerem maltratados e serem ouvidos, algo que falta amiúde nas audiências de custódia, na favela, nas delegacias e salas de espancamento neste Brasil.

O racismo organiza e sustenta a democracia brasileira. Os atos branco-golpistas desnudam ainda mais sua consciência de um poder pretensa e possivelmente ilimitado, capaz de deixar ilesas mais de mil pessoas que dilapidam o patrimônio publico e carcomem a civilidade, enquanto Dierson jaz no túmulo da barbárie naturalizada contra nós, negros e negras.

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Vassoura, muleta, guarda-chuva, skate: enganos que viraram tragédias.

Morte de catador:por falta de carimbo em atestado de óbito, corpo de morador da Cidade de Deus não foi sepultado

'Mataram por pedaço de madeira', diz filho de catador morto pela PM no Rio.

Vídeo: PM do DF escoltou bolsonaristas até a Praça dos Três Poderes.

Policiais aparecem filmando vandalismo em Brasília e conversando com manifestantes.

6 As obras de arte vandalizadas nas invasões em Brasília.

7 Ana Flauzina e Felipe Freitas, sempre ela e ele, em "Do paradoxal privilégio de ser vítima".

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.