Odé Komorodé
Odé arerê
Odé
Komorodé odé
Odé arerê
O negrume da noite
Reluziu o dia
O perfil azeviche
Que a negritude criou
Constituiu um universo de beleza
Explorado pela raça negra
Por isso o negro lutou
O negro lutou
E acabou invejado
E se consagrou
Inicio este texto pedindo agô à ancestralidade, às minhas mais velhas, às matripotências das mulheres negras, úteros férteis e geradores de filhas/os fortes, cabaças solares, orís coroados. O arco e flecha em punho anuncia a grandiosidade de uma mãe: Odé Kayodê - “o caçador que traz alegrias”.
Rememoro a infância e o quintal de casa, muitas árvores, chão de terra e a força da ancestralidade presente no Terreiro que me deu régua e compasso para ser a mulher que eu sou. Neste mesmo quintal de casa, havia uma senhora, cabelos grisalhos, olhar sereno e passos firmes. Como um guarda-costas, Alopá, o cachorro da raça pastor alemão a acompanhava.
Todas as crianças, inclusive eu, paravam de brincar para admirar a passagem de Mãe Stella. Em uníssono pedíamos a benção, ela sorria e nos abençoava, enquanto alguém já ajeitava a cadeira de balanço para ela se sentar na porta de Xangô. Saudosa lembrança.
Mãe Stella é referência, memória viva e continuidade. Nos deixou no plano físico em 27 de dezembro de 2018, aos 93 anos. Contudo, há uma cantiga que diz: “Os iniciados no mistério não morrem. Os iniciados no mistério não desaparecem. Os Iniciados no mistério vão para a casa do renascimento, onde tudo se renova.” Desta forma, a sua energia e essência continuam entre nós.
Assim como a energia de Oxóssi, o caçador de uma flecha só, que por ser única, não pode errar o alvo. Certeiro, flexível, observador, mira, atira a lança para acertar, trazer o alimento, matar a fome, gerar a vida.
Considerada uma das maiores Ialorixás do Brasil, lutou bravamente pela legitimidade do território/espaço das religiões de matrizes africanas. Confrontou a opressão e o racismo, defendendo a possibilidade de candomblecistas professarem a sua fé. Mesmo diante de todo o caminho trilhado, abrindo portas e sendo voz, não deixou de ser vítima do crime perpetrado pelo Estado Brasileiro há mais de 500 anos: o racismo.
Após a morte, mãe Stella foi homenageada com uma escultura do artista plástico Tatti Moreno, in memorian, situada na entrada da Avenida Mãe Stella de Oxóssi. Medindo 8,50 metros de altura, a obra traz a figura do Orixá Oxóssi, com 6,50 m, e a da Iyalorixá com 2 m. Trazendo a imponência que lhe era peculiar, a imagem é o símbolo de altivez e beleza, no litoral de Salvador.
Inaugurada no dia 9 de abril de 2019, poucas horas depois, foi alvo de um vídeo feito por um homem evangélico que associava a imagem de Oxóssi ao diabo. Ato explícito de racismo religioso, contou com a indignação de muitas pessoas, bem como, com o pedido de providências ao MP.
Interessante notar que a figura do diabo é criação das religiões cristãs. Nós, praticantes das religiões de matrizes africanas, não possuímos essa concepção, uma vez que o diabo não nos pertence e a nós nos compete a sua adoração. Como dizia a minha avó, mulher negra de Oyá: “quem acendeu o seu carvão molhado que abane”.
Outro episódio ligado à escultura, ainda em 2019, diz respeito à depredação, além de ser pichada, teve a placa de sinalização arrancada.1 Atitudes criminosas que demonstram o quanto o nosso país sinaliza para o ódio a tudo que é de preto, inclusive a religião. Os crimes são diversos e as punições inexistentes beiram ao descaso e à sensação de impotência.
Como se não bastassem os vilipêndios em 2019, explicitando o quanto a figura de uma mulher negra candomblecista incomoda aos racistas, no dia 4 de dezembro do corrente ano, madrugada de domingo, a escultura foi incendiada.
E nesse episódio eu me filio a Adriano Azevedo, Obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá e sobrinho de Mãe Stella de Oxóssi: "Assim como foi uma estátua queimada, corpos pretos são queimados, mortos, torturados pelo simples fato da cor da pele. Esses mesmos corpos são hostilizados só por professarem uma religião que é oriunda do povo preto".2
As religiões de matrizes africanas sempre estiveram sujeitas aos controles das autoridades. E esse controle nunca foi instrumento desconhecido pela população negra. Durante muitos anos, os terreiros de candomblés eram as únicas instituições religiosas que precisavam de registro obrigatório na polícia para funcionamento. Há um histórico de perseguição e marginalização das religiões de matrizes africanas e esse racismo só tem atualizado as suas formas.
Esse caso é o mais recente, mas diuturnamente nós somos vilipendiados institucionalmente, seja quando barram a nossa entrada em locais públicos por conta das vestimentas, seja pelos impropérios que são proferidos aos praticantes da religião. O fato é que nenhum templo religioso católico, pentecostal ou neopentecostal sofre esse tipo de retaliação, e esse é o melhor quadro de legalidade que nós vimos. Não é para acontecer.
Nós temos diversos órgãos empenhados em denunciar, frentes de praticantes da religião que envidam esforços para que esses casos não caiam no esquecimento, mas até que ponto contamos com o apoio do sistema de justiça?
Neste cenário, clamo para que Xangô e Ogum façam a justiça, pois não descansaremos. Eu sou o fruto das sementes lançadas por mulheres negras ancestrais e esse texto é flecha atirada por quem foi ensinada a nunca ser caça. Okê Arô.
2 Disponível aqui.