O direito penal é fruto da criação do Estado para a concreta realização de um fim, ou seja, realiza uma função política que alguns autores apontam como a “garantia de vida da sociedade”, a finalidade de “combater o crime”, ou ainda, a “preservação dos interesses dos indivíduos ou do corpo social”. Todavia, essas ideias não podem ser aceitas sem críticas. Por exemplo, o direito penal nazista, pretensamente, visava garantir as condições de vida da sociedade, no entanto, foi um dos maiores horrores experimentados pela sociedade1.
Na verdade, a função do direito penal consiste em estruturar e garantir determinada ordem econômica e social. Essa é a sua finalidade, não é ele uma celebração de valores eternos ou uma “glorificação de paradigmas morais”2. O direito penal serve aos interesses dominantes que, via de regra, refletem os interesses daqueles que estão no exercício do poder.
Há uma íntima relação entre os sistemas penais e às fases do desenvolvimento econômico que vão lhe imprimir variações. Georg Rusche3, em 1930, apontou a intrínseca relação entre punição e estrutura social, demonstrando ligação de proximidade entre o mercantilismo e as penas de galés e degredo, da prisão com a fábrica, da acumulação de capital com os sistemas penais.
Conhecer os fins do direito penal é conhecer os objetivos de criminalizar determinadas condutas praticadas por determinadas pessoas. A isso se dá o nome de “seletividade do sistema penal”, outros designam de racismo.
Zaffaroni entende por sistema penal o controle social punitivo institucionalizado4. Juarez Cirino ensina que o sistema penal é constituído pelos aparelhos judiciais, policiais e prisionais, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, pretendendo-se afirmar como garantidor de uma ordem social justa, mas, na verdade, funciona como uma estrutura opressora e injusta5, atuando seletivamente e a serviço de interesses econômicos, tendo como marca, além da seletividade e da repressividade, a estigmatização6.
Em termos simples, quando se vai, através das leis definir o que será crime, portanto, punido com uma “pena”, essa escolha (definição) não é feita com base em critérios verdadeiramente justos, paradigmas morais, ou fundadas nas leis naturais, mas ao contrário, a definição do que será crime punível com uma pena decorre de interesses de grupos que dominam o poder de fazer as leis em dado tempo e em dado território.
A própria história da pena de morte no Brasil ilustra bastante a questão da seletividade penal (do racismo) e o quanto o direito penal é utilizado para proteger interesses econômicos. Vamos começar pelo Código Penal do Império.
A Constituição Imperial de 1824 tinha um caráter liberal, por influência do iluminismo, foi um importante marco no Brasil do chamado “despotismo esclarecido”, ou seja, a manutenção do poder real com aplicação de alguns princípios iluministas, como o racionalismo, os ideais filantrópicos e o progresso. Na esteira desse ambiente, surge em 1830 o Código Criminal do Império, também com forte influência do pensamento liberal que, no campo penal, tinha em Beccaria seu maior expoente, com as ideias de humanização das penas.
Houve uma Comissão Bicameral que discutiu o projeto de código e nela muito se debateu sobre a utilidade e possibilidade de supressão da pena de morte. Todavia, a pena capital foi mantida ao argumento de que a criminalidade servil era muito difundida e, sem a pena de morte e as galés, não se manteria a ordem entre os escravos7.
Antes do Código Criminal de 1830 ser promulgado, países como a Dinamarca, o Haiti, o Chile e o México já haviam abolido a escravidão. Ainda assim, prevaleceu o temor em relação ao descontrole sobre os trabalhadores negros escravizados, tendo o código “liberal” de 1830, mantido a pena de morte. Previa, assim, em seu art. 113, o crime de insurreição se vinte ou mais escravos se juntassem “para haverem a liberdade por meio da força” e punia tal fato com pena de morte em grau máximo8.
Em 1933 ocorreu a revolta das Carrancas. Essa insurreição ocorreu no ano de 1833 em São João d’el Rei-MG, quando os escravos de um deputado do Império (Gabriel Francisco Junqueira) mataram seu filho e partiram para uma outra fazenda, dando cabo da família do irmão do deputado. Já no final de janeiro de 1835, ocorreu a Revolta dos Malês, na Bahia, na qual escravos nagôs em Salvador organizaram uma rebelião contra seus senhores que, todavia, não houve êxito. Esses dois eventos foram determinantes para que os dirigentes da sociedade escravista imperial elaborassem e trouxessem a tona a Lei de 10 de junho de 1835, que retirou dos escravos condenados a morte, por atentarem contra seus senhores e familiares, qualquer possibilidade de recurso9.
Quando o projeto da Lei de 10 de junho de 1835 foi remetido à Câmara e ao Senado, constou em seu preâmbulo a fala do Ministro da Justiça que destacava que “As circunstâncias do Império em relação aos escravos africanos merecem do corpo legislativo a mais séria atenção. Alguns atentados recentemente cometidos contra fazendeiros convencem dessa verdade (...) A punição de tais atentados precisa ser rápida e exemplar.”10
Na verdade, os “atentados recentemente cometidos”, referidos pelo Ministro da Justiça, seriam episódios ocorridos nas províncias da Bahia, de São Paulo e de Minas Gerais, nos quais, por não mais aceitarem castigos violentos e trabalhos extenuantes ou por serem vendidos para outros pontos do país, sendo separados da família, pessoas escravizadas atacaram seus senhores11.
O senador Silveira da Mota, manifestando-se sobre o descontentamento que se tinha com a resistência do Imperador Pedro II na execução das penas capitais, disse que:
“Nós sabemos que a escravidão é uma violência e uma injustiça, mas as violências se mantêm senão com outras violências. (...) Num país de escravidão, se o governo quer harmonizar a lei criminal com os princípios filosóficos, então o meio é outro, é acabar com a escravidão. Enquanto não acabar com ela, o meio é a lei de 1835”12.
Note-se que no discurso do parlamentar há uma relação de essencialidade entre escravidão e pena de morte, ou seja, uma economia na qual o modo de produção era fundado na mão de obra escrava não poderia abrir mão da pena de morte para sua manutenção. Para acabar com a pena de morte (Lei de 1835), prescrevia o Senador, há que se acabar com a própria escravidão.
Com a chegada da República, vê-se novamente a relação seletiva entre direito penal e interesses econômicos. Com o fim das senzalas, acontece a ocupação dos espaços públicos pelos negros, ex-escravizados que não foram absorvidos como mão de obra assalariada, a política pública da época foi de importação de mão de obra branca, assalariada imigrante. Os negros livres nas ruas produziram uma sensação generalizada de caos, fundamentando a repressão à ociosidade. Ademais, nesse período de mudança no modo de produção e de uma nova economia no mundo, advinda da revolução industrial, mendigos, incapazes e negros recém-libertos eram considerados como anormais que dificultam e oneram a parte produtiva da sociedade13.
No Brasil, o poder político nesse período era dominado por fazendeiros escravocratas e seus filhos. O fim da escravidão (1888) foi seguido de um projeto de criminalização da vadiagem, com pena privativa de liberdade de até 03 anos para reincidentes, mantendo vivo o ideário do Código de 183014. Assim, no nascimento da República, tivemos um projeto repressivo elaborado para aplacar os medos das elites com receio das hordas de libertos, vistos no campo como potenciais furtadores e na cidade, como bandos de capoeiras e desocupados não admitidos na indústria15.
Temos que lembrar que vadios e ociosos desprovidos de recursos ou meios de vida no início da República eram irremediavelmente os ex-escravos. Cremos que, com isso, já se tem uma ideia bem concreta sobre a associação do direito penal a proteção de interesses econômicos hegemônicos.
A pena de morte no Brasil teve sua aplicação desde o descobrimento, basta pensar no indígena que o governador-geral Tomé de Souza mandou explodir a boca de um canhão em 1549. São lembrados alguns episódios históricos, como enforcamento e esquartejamento de Tiradentes em 1792 e no fuzilamento de Frei Caneca em 1825.
Todavia, a pena de morte, praticamente, teve seu fim na pacata cidade de Pilar, na província de Alagoas, quando em 1876 ocorreu a última execução no Brasil. No episódio, o negro Francisco foi enforcado em praça pública, reunindo cerca de 2 mil curiosos, inclusive vindos das vilas vizinhas. Na plateia, contava-se com muitos escravos levados por seus donos, para que o espetáculo de horror lhes servisse de exemplo, vez que o escravo fora condenado à forca por matar a pauladas e punhaladas um dos homens mais respeitados de Pilar e sua mulher16.
Com a Constituição Republicana de 1891, as legislações que previam a pena de morte foram abolidas. Ainda hoje, a Constituição Brasileira permite a pena de morte, mas apenas no caso de guerra declarada (art. 5º, XLVII, a c/c art. 84, XIX, CRF/88).
No entanto, as execuções informais de negros e negras, de todas as idades, mas principalmente da juventude negra, faz parte do cotidiano brasileiro.
Através de uma pesquisa realizada pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e pelo Senado Federal, constata-se que 56% da população brasileira concorda com a afirmação de que “a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de um jovem branco”.
Uma campanha da Organização das Nações Unidas (ONU Brasil) apontou a relação entre racismo e violência no país. Chama a atenção o fato de que um jovem negro morre a cada 23 minutos no Brasil17.
Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).
Diante desse cenário é importante afirmar que para aqueles que ainda ostentam de fato a condição de não-ser na sociedade brasileira, a pena de morte reinventada na informalidade, o que lhe torna ainda mais cruel e incontrolável, não foi abolida, ao contrário é a tecnologia do poder para gerir os indesejáveis. É uma política pública de “segurança”. Vidas negras importam!
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1 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 20-21.
2 BATISTA, op. cit., p. 20.
3 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2004.
4 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Sistemas penales y derechos humanos em América Latina. Buenos Aires, 1984, p. 07.
5 CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 26.
6 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 26.
7 PINESCHI, Bruna de Carvalho Santos; SOUSA. Daniel Aquino de. O Código Criminal do Império e seu papel no direito penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 131/2017 | p. 79 - 115 | Maio / 2017.
9 Sobre o tema: REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do levante dos Malês, 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; RIBEIRO, José Luis. No meio das galinhas as baratas não têm razão: a Lei de 10 de junho de 1835 – os escravos e a pena de morte no Império do Brasil: 1822-1889. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
10 Agência Senado, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil
11 Idem.
13 CRUZ, Eugeniusz. O eco escravista: Processo histórico de formação da seletividade penal. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica Rio de Janeiro: vol. 10, no3, setembro-dezembro, 2018, p. 464-484.
14 CRUZ, op. cit.
15 BATISTA, Nilo. Apontamentos para uma história da legislação brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2016, p 63.
16 Agência Senado, https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/04/ha-140-anos-a-ultima-pena-de-morte-do-brasil
17 Os números são do Mapa da Violência, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Disponível também em: https://www.geledes.org.br/cada-23-minutos-um-jovem-negro-morre-no-brasil-diz-onu-ao-lancar-campanha-contra-violencia/?gclid=CjwKCAjwtp2bBhAGEiwAOZZTuC0bQ0a6o_nHbxU__3OG0pM0uo3c-TXdfV8JxctLWX1xlkAm3GvFnRoCXUMQAvD_BwE