Olhares Interseccionais

Racismo, política e liberdade de expressão. O ódio não está autorizado

A incitação ao racismo não está protegida pela liberdade de expressão.

24/10/2022

Nas semanas que antecedem o processo de  sufrágio, é comum haver debates e reflexões  sobre fenômenos relacionados ao universo da comunicação utilizada nas propagandas políticas, bem como sobre o adequado manejo das informações difundidas no processo eleitoral e o cotejo com limites e ditames éticos/morais. Em tempos de pós-verdade e comunicação tecnológica difundida em redes, as Fake News são um problema de difícil enfrentamento.

Além das notícias que não possuem lastro fático verídico, é um desafio para as autoridades envolvidas combater formas de comunicação que ofendam princípios basilares da nossa democracia.

Se por um lado o pluralismo político e a dignidade da pessoa humana são fundamentos de nosso Estado Democrático, de igual modo, são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:  construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Nesse sentido, tais valores devem servir de bússola na avaliação dos limites do que deve ser expresso, sempre havendo a devida observância do direito fundamental a liberdade de expressão.

Um grande equívoco, contudo, é utilizar este  direito fundamental como escudo para graves violações de direitos humanos e dos valores basilares de nossa democracia.

O presidente da corte TSE enfatizou, em julgamento recente, que no segundo turno das eleições de 2022, estão ocorrendo duas modalidades de desinformação: a que manipula premissas reais para se chegar a uma conclusão falsa e o uso de mídias tradicionais para divulgar fake news.1

Recentemente, a campanha de determinado candidato proferiu ofensas a comunidade penitenciária, ao afirmar que os votos do outro candidato concorrente teria sido originado de pessoas presas, dando a entender que este seria um fator negativo a ser levado em consideração na escolha de daquele candidato.

A Narração da peça induz a conclusão de que "os criminosos escolheram o candidato x para presidente!"

Em nota oficial sobre o tema, a Defensoria Pública da União ressaltou que "a propaganda eleitoral em questão causa repúdio pela escolha de imagens de  jovens negros com índole sensacionalista possivelmente extraídas de acervo policial, evidenciando uma grosseira distorção dessas imagens para imprimir os gestos de apoio ao candidato adversário ao que tempo que o rotula como apoiador de bandidos, incitando inclusive a violência política com contornos raciais ainda mais preocupante no atual cenário eleitoral."

A propaganda eleitoral, de fato, distorce o entendimento do eleitor, ao omitir que o direito de voto deve ser exercido por pessoas que se encontram presas provisoriamente em estabelecimentos prisionais em razão de medida cautelar judicial, antes da ocorrência do julgamento com trânsito em julgado. Falha, portanto, com o dever de prestar uma informação real.

  A peça refutada pode ser entendida, ainda,  no sentido de possuir  como pano de fundo um cunho racista, ao reforçar estigmas negativos que recaem sobe a população preta e pobre existente de maneira majoritária no nosso sistema penal já permeado pela  seletividade que envolve critérios de raça e classe. As imagens utilizadas de pessoas pretas algemadas na propaganda reforçam essa circunstância.

As estatísticas que envolvem a população carcerária  brasileira  e os estudos relacionados à epistemologia criminológica depõem sobre essa realidade seletiva.

O código eleitoral determina em seu  Art. 243:

 Não será tolerada propaganda:

 I - de guerra, de processos violentos para subverter o regime, a ordem política e social ou de preconceitos de raça ou de classes;

Contudo, na guerra argumentativa que ocorre dentro e fora da campanha política, tanto por parte dos profissionais de comunicação, quanto do eleitorado movido pela passionalidade, não faltam defesas para com a suposta correção da aludida peça de propaganda sob o argumento de que em termos de propaganda política, tudo é válido,  devendo prevalecer o direito à liberdade de expressão.

No entanto, a incitação ao racismo não está protegida pela liberdade de expressão. A   Jurisprudência do STF  entende que  o discurso de ódio (hate speech) está em oposição aos princípios constitucionais de igualdade,  dignidade da pessoa humana, bem como o objetivo da promoção do bem de todos sem preconceito, conforme ilustra o julgado do STF do HC 82.424/RS.

Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria CF (art. 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.

[HC 82.424, red. do ac. min. Maurício Corrêa, j. 17-9-2003, P, DJ de 19-3-2004.] 

O entendimento da nossa Suprema Corte é no sentido de que manifestações discriminatórias não se alinham ao sistema principiológico da Constituição Federal de 1988 , notadamente em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana e outros dele derivados, em desrespeito aos valores éticos, políticos, morais e sociais que permeiam nosso meio social.

Ronaldo Dworkin2 discorre que a “liberdade de expressão tem papel evidente na concepção majoritarista. Essa concepção de democracia exige que se dê oportunidade aos cidadãos de se informar de maneira mais completa possível e deliberar, individual e coletivamente, acerca de escolhas, e é um critério estratégico vigoroso que a melhor maneira de proporcionar essa oportunidade seja permitir que qualquer pessoa deseje se dirigir ao público o faça, de maneira e na duração que pretender, por mais impopular ou indigna que o governo ou os outros cidadãos julguem essa mensagem”. 

Daniel Sarmento informa que “Cortes constitucionais e supremas cortes de diversos países já se manifestaram sobre a liberdade de expressão, bem como instâncias internacionais de direitos humanos. Uns, de um lado, afirmam que a liberdade de expressão não deve proteger apenas a difusão das ideias com as quais simpatizamos, mas também aquelas que nós desprezamos ou odiamos, como o racismo. Para estes, o remédio contra más ideias deve ser a divulgação de boas ideias e a promoção do debate, não a censura. Do outro lado estão aqueles que sustentam que as manifestações de intolerância não devem ser admitidas, porque violam princípios fundamentais da convivência social como os da igualdade e da dignidade humana, e atingem direitos fundamentais das vítimas.3

Ao se analisar a teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy4, verifica-se que nenhum princípio constitucional deve ser entendido de maneira  absoluta, devendo ser feita, em cada caso concreto, a ponderação e equilíbrio entre eles.

É bem de ver, igualmente,  que a CF informa que racismo é crime imprescritível e inafiançável e o Brasil é signatário de diversos tratados e acordos internacionais que  tipificam condutas racistas ou discriminatórias, seja por questões de raça, etnia, cor, religião ou nacionalidade.

Na legislação brasileira, não existe uma definição sobre o  denominado "hate speech", discurso de ódio. O projeto de lei 7582/2014 , rejeitado pela Comissão De segurança pública em 2021 tinha a seguinte previsão :

Art. 3º Constitui crime de ódio a ofensa a vida, a integridade corporal, ou a saúde de outrem motivada por preconceito ou discriminação em razão de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua e deficiência.

Lamentavelmente, o critério racial não foi aposto no texto do projeto originário. Equívoco inadmissível. 

Nesse sentido, ainda estamos no começo da caminhada para o enfrentamento deste tipo de prática, de modo que as instituições que velam pelo Estado Democrático de Direito, bem como a sociedade civil devem manter-se vigilantes e combativos com os abusos ocorridos nos tempos de pós-verdade, com a prática de discriminações de cunho racial em nome da liberdade de expressão.

__________

1 Disponível aqui.

2 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana – a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 503/504: 

SARMENTO, Daniel. A liberdade de expressão e o problema do "Hate Speech". In: SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 

4 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001.

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Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.