"Negro drama
Entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama
Negro drama
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura
[...]
Eu num li, eu não assisti
Eu vivo o negro drama
Eu sou o negro drama
Eu sou o fruto do negro drama".
(Negro Drama – Racionais MC's)
Sábado, 3 de setembro de 2022, no palco do Rock in Rio, o auge da apresentação dos Racionais MC'S, foi Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay cantarem o clássico hino "Negro drama", enquanto exibia-se no telão os rostos, nome e idade de algumas vítimas da violência estatal no Brasil: Ágatha, Cláudia, Durval, Genivaldo, João Pedro, Kathlen, Luana, Moisé, Mariele... "Olha quem morre, então, veja você quem mata".
"Recebe o mérito, a farda que pratica o mal, me ver pobre preso ou morto, já é cultural..." A lista é infinita, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 84% (oitenta e quatro por cento) das pessoas mortas em ações policiais no Brasil, em 2021, são negras. Em Salvador, 100% (cem por cento) dos mortos pela polícia, são negros/as, conforme levantamento realizado pela Rede de Observatórios da Segurança, em relação ao ano de 2020.
O rap engrandece as nossas narrativas e embala jovens negros/as, sobretudo das periferias, pois o ponto fulcral, talvez seja o resgate das memórias. Pelo impacto da exposição dos Racionais MC's, as redes sociais ficaram em polvorosa, tal qual a exclamação: "Nós não esqueceremos".
"Negro drama, cabelo crespo e a pele escura, a ferida, a chaga, à procura da cura"... Sim, nós, mulheres negras e homens negros não esqueceremos das várias marcas coloniais circunscritas em nossos corpos. Seja porque, "dói quando respiramos", ou porque não dá tempo de sentir a dor, uma vez que o projétil atinge o peito antes de sequer sabermos o significado dela.
E foi assim, sem saber distinguir a dor causada por um arranhão oriundo de uma brincadeira de criança, e a dor da morte em vida, que muitas sementes brotaram, mas não tiveram as chances de florescerem, até a fase adulta.
Em Salvador, Mirela do Carmo Barreto, 6 anos, filha única, foi morta na laje de casa, no bairro de São Caetano. A Comunidade desabafou em poucas palavras o sentimento visceral: "O que essa criança viveu para passar por isso? Que culpa ela tem? Você vê o clamor por justiça e sabe que não vai dar em nada porque somos da periferia, somos pobres. Falta respeito". [...] "Eles sabem que não vai dar em nada e a gente está cansado de tomar porrada".
Joel Conceição Castro, 10 anos, morto durante uma ação policial no Nordeste de Amaralina. A mãe da vítima desabafou: "eles já chegaram aqui xingando todo mundo. Meu filho estava arrumando a cama para dormir quando recebeu os tiros".1
Davi Fiúza, 16 anos, desaparecido após uma abordagem da polícia Militar, nunca foi encontrado. 8 anos após o desaparecimento, em agosto desse ano seria realizada a 1ª audiência, cancelada no dia marcado para acontecer. A mãe, Ruth Fiúza desabafou: "Eu preciso disso para acalmar a alma. É muito difícil, porque o meu filho não teve direito de ir e vir. São oito anos que eu espero por ele, mas eu sei que ele não volta mais. De qualquer forma, ele está vivo dentro de mim, e vai continuar vivo até o fim da minha vida".
Railan Santos da Silva, 7 anos, portador de transtorno do espectro autista, atingido por disparos de arma de fogo perpetrados por policiais militares, no Curuzu, enquanto assistia uma partida de futebol na comunidade.2 Fernanda Evangelista, mãe de Railan desabafou: "Eu digo todos os dias: eu estou morta viva. Eu tive um filho de 7 anos, cuidei de meu filho, para agora acontecer isso. Está errado isso, gente! E agora, eles vão dizer que as balas foram de quem? Só faltaram, dizer que meu filho estava armado".
O que essas crianças e adolescentes têm em comum, perpassa pela variável que se apresenta desde o nascimento até a morte: a cor negra. Em quase todos os casos expostos, a assessoria de comunicação da Polícia Militar alegou que os policiais se depararam com suspeitos armados, que teriam disparado contra eles, ocorrendo o predestinado "revide à injusta agressão". A militarização da polícia passa pela lógica de combate ao inimigo. Pelo raciocínio do policiamento ostensivo, os policiais deveriam prevenir delitos, em lugar disso, revidam à suposta "injusta agressão" e acumulam mortes.
Ainda em Salvador, Cristal Rodrigues, 15 anos, foi morta em uma tentativa de assalto, no bairro do Campo Grande, quando caminhava para ir à escola. A delegada responsável pelo caso explicou em entrevista: "Os familiares estão muito abalados. Já mantivemos contato com um familiar da vítima e a gente se solidarizou com o sentimento de dor, dissemos que todas nossas equipes estão mobilizadas e a gente está tentando viabilizar o melhor momento de fazer a oitiva da família".3
Após a morte, o Comandante-Geral da Polícia Militar enfatizou: "Gostaria de me solidarizar com a família. É uma tragédia. Queremos dizer que daremos a resposta à sociedade o mais rápido possível. Todo nosso efetivo está imbuído na busca desses algozes que precisam ser retirados do convívio social".4 O Centro da cidade foi tomado por efetivos policiais civis e militares, durante muitos dias, após o fato. O local da morte virou santuário no qual as pessoas renderam homenagens com coroa de flores, cartas e velas acesas em memória. Toda a sociedade soteropolitana àquela altura clamou por justiça. No lapso de 2 (dois) dias, as duas suspeitas foram presas.
Cristal era uma menina branca, moradora do Corredor da Vitória, bairro nobre de Salvador. Assim como os casos relatados neste texto, merecia florescer, brilhar. Teve a sua vida ceifada por duas mulheres negras, o caso mudou totalmente a narrativa-padrão. Eram negras as mãos que apertaram o gatilho e era branco o corpo estendido no chão.
Mesmo se eu não tivesse mencionado a cor da pele de Cristal, talvez, a descrição tenha trazido ao/a leitor/a a dimensão sobre os antagonismos da Negra Salvador. Isto porque, as narrativas sobre corpos negros seguem na via marginal. Detalhes que passam despercebidos, "pois no racismo o indivíduo é cirurgicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade que ele/ela possa realmente ter"5.
"Daria um filme, uma negra e uma criança nos braços solitária na floresta de concreto e aço. Veja, olha outra vez o rosto na multidão, a multidão é um monstro sem rosto e coração..."6
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 Disponível aqui.
4 Disponível aqui.
5 KILOMBA, Grada. "The Mask". In: Plantation Memories: Episodes of everyday racism. Tradução: Jessica Oliveira de Jesus. Munster: UnrastVerlag, 2ª Edição, 2010, p. 176.
6 Negro Drama- Racionais MC's.