É torrencial e ácida a chuva de gente negra que se derrama no cotidiano em formato de pedaços de carne ensanguentados e selados por chumbo. Aliás, viver negramente não sugere eufemismos, ainda mais quando perspectivas sufocantes sobre classe, gênero e sexualidade constituem a encruzilhada desse existir. É melhor falarmos logo em genocídio antinegro. A contínua, massiva, sistemática e gratuita morte de pessoas negras não cabe na literatura. É tão assustadoramente real, que desdenha da mais tormentosa ficção afropessimista.
E com tanta nervura exposta, essa morte coletiva negra é invisibilizada por quem, com sobra de tempo, brinca de blackface e antirracismo de ocasião. A branquitude — muitos/as de uma alvura postiça — é perita na arte de se manter no poder e explorar a carne negra. E, justamente por isso, cenas desse genocídio antinegro entram no especulativo e lucrativo mercado midiático, cujo critério é: quem pode oferecer mais detalhes sobre o suplício deste ou daquele corpo negro?
São tantas formas de nos matar. São várias as maneiras de nos fazer morrer de "morte natural". Do excesso de sal e gordura na alimentação desconectada de princípios alimentares ancestrais, passando pela saúde mental interrompida pela parábola neoliberal da meritocracia, aos tiros certeiros de balas perdidas, aquelas que devastam sonhos das comunidades negras, interrompem grávidas, abortam a ingenuidade das crianças, antes mesmo que consigam chegar nas sinaleiras da vida, onde costumam segurar placas de papelão nas mãos que anunciam: tenho fome! Há quem prefira dizer que essas crianças famintas esquecidas nas ruas são apenas mais um caso de insegurança alimentar. É fome grotesca, quer saber, é fome, e, como sempre, no Brasil a fome é negra.
" (...)
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
(...)
se tem gente com fome
dá de comer.
(Solano Trindade)1"
"A felicidade do branco é plena. A felicidade do preto é quase." Queria tanto discordar de Emicida. Sinto uma espada atravessar meu corpo, em corte diagonal, quando ouço esse trecho de Ismália. Penso: será sempre assim a condição da negritude, uma atmosfera de falta, subtração, a variar somente na intensidade dessa falta de si, desse sentir-se estranho e deslocado em convívio com o mundo branco?
Difícil escapar daquela cena musical, do quase .... que angustia o coração, e que é real num país que se recusa a discutir seriamente seus conflitos étnicos e raciais, e não consegue assumir historicamente que a (falsa) abolição da escravização não assegurou o respeito à dignidade do povo negro, a suas tradições religiosas e elaborações linguísticas, lançando-o em um mar social de explorações e criminalizações destinadas a novas formas de aprisionamento. Do ferro quente lançado em seus rostos, das correntes amarradas em seus pulsos, diretamente para os porões de viaturas e cárceres imundos.
Canta Lazzo Matumbi, nos lembre sempre daquela música que diz: "no dia 14 de maio, eu saí por aí/ Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir/ Levando a senzala na alma, eu subi a favela/Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci/ Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia/Um dia com fome, no outro sem o que comer/Sem nome, sem identidade, sem fotografia/
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver." Esse negro poeta musical também nos entrega um pouco de vigor ao cantar os versos: "mas minha alma resiste, meu corpo é de luta/Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu."
Conseguiremos resistir e (re) existir a esse desperdício de vidas negras, marcado por uma ciranda infinita de assassinatos, violências obstétricas e sexuais? Outro dia a placa de um restaurante zen mostrava: "a alimentação cura e a arte salva". Algo assim. A população negra, como regra, está exposta a uma alimentação de baixa qualidade nutritiva, isso quando não está inserida num quadro crônico de fome. Ou seja, é alvo do que se pode chamar de racismo alimentar, que resulta em nutricídio.2
E quem está agonizando no dia a dia, tentando garantir um prato de feijão com arroz, catando restos, não tem espaço mental, por óbvio, para a arte. Aquela frase zen, na prática, não acolhe a população negra. Carolina de Jesus deixou anotado em seu diário: "eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: faz de conta que eu estou sonhando.3"
E no subúrbio ferroviário tem muita gente morrendo de "invasão domiciliar". Lá pelas tantas e, às vezes em plena luz do dia, tem gente preta sendo exterminada. Ninguém sabe. Ninguém viu. A história se repete por anos, investigações não são iniciadas ou esbarram em ausência de informações probatórias sobre a autoria delitiva. Códigos de silêncios celebram o genocídio da juventude negra.
Cadáveres adiados. Parece que foi essa a expressão usada por Zaffaroni em A Questão Criminal para se referir à situação dos/as que são alcançados/as pelo sistema de justiça criminal. Ainda é pouco. O pensamento de João Costa Vargas é mais certeiro, precisamos compreender que "a morte negra não causa escândalo."4 O Brasil é um país antinegro. Talvez por isso as frequentes condenações injustas de pessoas negras, uma espécie de morte social, não causam o impacto reflexivo que deveriam proporcionar. A branquitude segue inabalável em seu percurso histórico de expropriação material, carnal, espiritual e emocional de pessoas negras.
Tem gente preta desaparecendo, transformando-se em gotas de sangue que jorram dos olhos de mães pretas. Há dores que nem a força do atabaque acalma, nem a magia de estar descalço na terra molhada, esperando Exu passar, consegue dar conta, porque ser mãe numa comunidade negra periférica é experenciar um constante déjà vu sobre a morte precoce do próprio/a filho/a.
Ao abrir o email institucional, algumas mensagens eletrônicas portavam o título Nota de Falecimento: "Com pesar comunicamos o falecimento de .... O sepultamento será .....". Essas notas têm um sabor emocional adstringente. Quando será a minha vez? Uma nota sobre um parente próximo? Naquela semana, percebeu-se que as notas se referiam também a parentes distantes, que eram sempre no mesmo formato, embora motivadas por uma intenção burocrática de prestar condolências. Na hora da morte, o Estado não perderia o caráter insosso de sua existência.
Naqueles dias, um pensamento diferente apareceu quando a pele preta reluziu mais forte nas reflexões diárias. Nem isso. Nem mesmo essa frieza burocrática estatal que presta solidariedade sobre a morte de um parente, a comunidade preta tem direito. Não que seja grande coisa. Não bastassem os corpos negros em que tropeçamos nos noticiários e nas calçadas periféricas, é mais uma evidência de que "a morte negra não causa escândalo."
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1 Poema Tem gente com fome, de Solano Trindade, em Cantares ao meu povo, 1961. Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2022.
2 Expressão usada pelo médico e intelectual Dr. Llaila O. Afrika para designar o limitadíssimo acesso da população negra a alimentos saudáveis, frescos, e como essa população, em um cenário problemático de nutrição global, tem sofrido com o consumo de produtos ultraprocessados, sendo alcançada por doenças como diabetes e pressão alta, além de integrar com destaque o mapa da fome mundial. É autor dos livros Nutricide: The Nutritional Destruction of the Black Race e African Holistic Health.
3 Jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014, p. 29.
4 VARGAS, João Costa. Por uma mudança de paradigma: antinegritude e antagonismo estrutural. In: Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, v.48, n. 2, p.83-105, jul./dez., 2017.