Olhares Interseccionais

E quem se importa com a dor da mãe preta? Pelo direito de nomear as nossas dores em primeira pessoa

As vivências do racismo são como feridas abertas que não cicatrizam. De tanto doer, chegamos até a "esquecer" que elas estão lá, latentes, em carne viva.

8/8/2022

Até que os leões possam contar suas próprias histórias
Os caçadores sempre serão os heróis das narrativas de caça.

Provérbio bakongo

As vivências do racismo são como feridas abertas que não cicatrizam. De tanto doer, chegamos até a "esquecer" que elas estão lá, latentes, em carne viva.

Certa feita, uma pesquisadora da área da educação e relações raciais me perguntou de inopino, no início de uma entrevista: "qual a sua experiência mais violenta de racismo?".

Embora engasgada, a resposta saltou da minha boca sem que eu pudesse dosar as palavras: "eu apanhei!". Os traumas (coloniais)1 daquela lembrança "quase esquecida" latejaram no meu corpo e meus olhos quiseram transbordar. Engoli o choro como, muitas vezes, minha menina engoliu. Permanecemos alguns segundos em silêncio, enquanto eu ouvia aquela voz: "neguinha aguenta, neguinha aguenta!", era o que dizia um dos meus agressores enquanto me batia. Eu ainda não tinha nem oito anos de idade, quando "gritaram-me negra",2 mais uma vez!  

A pesquisadora interrompeu a entrevista. Nunca mais nos encontramos, mas, depois daquele dia, uma pergunta passou a rondar meus pensamentos por alguns poucos pares de anos, até hoje. Por que eu não contei aos meus pais essa e outras tantas experiências de racismo que sofri na infância?

Há alguns dias, foi exaustivamente noticiada e festejada a reação de Giovana Ewbank, mulher branca, diante de ataques racistas cometidos contra seus filhos, duas crianças negras. Giovana reagiu como toda mãe deveria ter o direito de reagir. Mas mães pretas não têm! Quando Taís Araújo, mulher negra, revelou publicamente que a cor do seu filho fazia com que as pessoas mudassem de calçada, sua fala foi invalidada, deslegitimada. Ela teve sua dor de mãe preta negada e ainda sentiu na pele, ela própria, mais uma vez, o racismo. Sim, Tais foi taxada de vitimista e sofreu ofensas racistas por quebrar o silêncio acerca do racismo contra crianças negras, por proteger o seu filho.

Os dois episódios, tratados de maneira tão diferentes, demonstram que não há toga, jaleco ou qualquer roupa de grife que seja capaz de nos proteger do racismo, de "revestir" a nossa pele preta para imunizá-la. Nosso corpo é um alvo sempre disposto e exposto!

Afinal, quem se importa com a dor da mãe preta? Aquela que prefere que seus pretinhos tomem chuva do que saiam "armados" com guarda-chuvas ou usem casacos com capuz; aquela que permanece em angustiante vigília enquanto seus filhos não retornam para casa; e que, depois de enterrarem seus meninos – quase (nunca) homens feitos – encontrados pelas balas perdidas, precisam transformar luto em luta.

Enquanto isso, a guerra antinegra segue seu curso, responsável por 77,9% do número de homicídios cometidos no Brasil (que representam 20,4% dos homicídios cometidos no mundo) Dentre os assassinados, 91,3% eram negros e 50% tinham entre 12 e 29 anos.3

Num modelo de mundo tão estruturalmente racista como esse em que vivemos, no qual a violência racista não encontra qualquer limitação geográfica ou etária, apenas quando pessoas brancas reagem ao racismo que violenta nossos corpos todos os dias, ele, enfim, se torna realidade. Mas se somos nós a defendermos nossas crias, esse mesmo racismo encarnado atravessa nossas existências, sangrando velhas/novas feridas eternizadas.

Precisamos, então, de proteção das/os brancas/os? Não foi o que nos ensinou a nossa ancestralidade, que abriu caminhos em meio às opressões coloniais escravagistas e, com isso, confirmou que não precisamos e que não podemos contar com a defesa de uma branquitude que colheu e segue colhendo privilégios às custas de sangue, suor e lágrimas negros

Se não é possível imaginar quais serão nossas reações quando o racismo nos atingir às escâncaras, mesmo que através das mais costumeiras formas, quando sua violência é direcionada a nossas filhas e filhos, não é difícil antever a ventania que nos invade e nos enche de fúria. Afinal, a queimadura é sempre certa quando se brinca com fogo. Tinha razão Luiz Gama quando dizia que "essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões onde arde o fogo sagrado da liberdade"!4 Da nossa liberdade, pois o nosso útero-cabaça é umbigo-berço do mundo; não gera e protege apenas nossas crianças! Protege o quilombo inteiro!

Enfim, entendi, o porquê eu, menina preta em meio à branquitude, silenciava frente às violências racistas que me afligiam quando ainda nem sabia nominá-las: eu estava, instintivamente, tentando proteger os meus pais do próprio racismo. Com o tempo, aprendi a me defender, a responder à altura, a bater de volta. O que teria sido da minha menina se não fosse o racismo?

Hoje, não sei dizer o quanto da minha postura altiva (ou seria vigilante?) e da minha língua a(la)fiada ("indolente", na visão branca; insurgente em essência) são resultado das (sobre)vivências ao racismo. De tanto "apanhar" acabamos criando uma couraça defensiva que, de um lado, nos endurece o coração, do outro, nos faz padecer da alma. Ainda assim, "tornar-se negra dói, mas é libertador!",5 porque envolve retomar o direito de nomear as nossas dores,6 numa disputa narrativa que faz ecoar um clamor ancestral por justiça.

Que possamos ter o direito de narrar, nomear e ter reconhecidas as nossas dores em primeira pessoa. Que sejamos leoas a contar as nossas próprias histórias de caça, colocando o caçador em seu devido lugar...

__________

1 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

2 Em referência ao poema cantado de Victoria Santa Cruz, "Gritaram-me negra".

3 Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2022. Disponível aqui.

4 GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas.

5 VAZ, Lívia Sant’Anna Vaz; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra.

6 Rita Segato aborda a importância do "direito de nomear o sofrimento", conferindo significado social ao sofrimento que é convertido em pauta emancipatória na construção de justiça. SEGATO, Rita. Femi-geno-cidio como crimen en el fuero internacional de los Derechos Humanos: el derecho a nombrar el sufrimiento en el derecho. In: FREGOSO, Rosa Linda; BEJARANO, Cynthia (Orgs.). Feminicídio en América Latina Diversidad Feminista. Cidade do México: CEIICH/UNAM, 2011.

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