Olhares Interseccionais

Só é contra a proteção à maternidade quem nunca mamou

Mulheres possuem dificuldade de continuar a amamentação exclusiva, em virtude da necessidade de retorno precoce ao mercado de trabalho, o que atinge em especial, aquelas em situação de vulnerabilidade social, o que inclui, majoritariamente, a realidade cotidiana de mulheres negras.

25/7/2022

A proteção da maternidade é direito social insculpido na nossa CF/88, que assinala, dentre outras prerrogativas normativas a licença e o salário-maternidade, a proteção especial da gestante no âmbito previdenciário, bem como a assistência social. No entanto, a despeito dos dispositivos em destaque, o que se constata é que o ordenamento legal não assegura, quer à mulher, quer à criança proteção efetiva e integral, bem como prescreve normativo que fomenta a manutenção da discriminação de gênero pela limitação do tempo de responsabilidades paternas.

No dia 3 de junho, celebrou-se o dia mundial de proteção ao aleitamento materno, enquanto o mês ora vindouro é conhecido como “agosto dourado”, por ser dedicado à conscientização e esclarecimentos sobre a importância do aleitamento materno, fonte principal para a saúde do bebê. Apesar disso, há pouco o que celebrar, quer pelas reminiscências do passado, quer, da atualidade.

Do passado, impõe-se lembrar as tantas feridas históricas que remontam a memória das mulheres negras, que escravizadas, foram privadas do exercício da maternidade livre e da amamentação de seus filhos, não raro fruto de violência sexual, pois separadas eram de suas famílias para servirem de amas de leite das famílias brancas.

Na atualidade, as mulheres possuem dificuldade de continuar a amamentação exclusiva, em virtude da necessidade de retorno precoce ao mercado de trabalho, o que atinge em especial, aquelas em situação de vulnerabilidade social, o que inclui, majoritariamente, a realidade cotidiana de mulheres negras.

Aspectos como a ausência de rede de apoio, a solidão materna, a desigualdade social e econômica e as restrições impostas pelo mercado de trabalho antes, durante e após o exercício da maternidade, em especial, em um contexto que mães solo são uma realidade estatística significativa em nosso país e demonstram que existe uma grande lacuna em termos de implementação de políticas públicas que garantam a proteção da maternidade, bem como a corresponsabilização dos genitores no contexto familiar.

O art. 7º, XVIII, da CF/88 prevê licença à gestante com duração de cento e vinte dias, sem prejuízo ao emprego e ao salário assim como garantia de emprego limitada a cinco meses após o parto, enquanto ao genitor, a quem deveria ser prescrita igualdade de condições para o cuidado com a prole, a licença se limita ao mínimo até 20 dias, a depender da natureza do vínculo de trabalho entabulado.

Segundo a organização mundial de saúde, 6 milhões de crianças são salvas por ano por conta de campanhas de aleitamento materno, ainda assim, a licença-maternidade de até seis meses não é uma realidade para todas no país, essa restrita a servidoras públicas e empregadas de empresas inscritas no programa empresa cidadã, o que denota, portanto, que não apenas o gênero, bem como a desigualdade social e econômica, caracterizam marcadores restritivos não apenas ao acesso, como também à permanência das mães no mercado de trabalho.

O art. 396, CLT, apesar de prever que a mulher terá direito, durante a jornada de trabalho a dois descansos especiais de meia hora cada um, não previu, por exemplo, espaço adequado para que a mulher possa promover o aleitamento no ambiente de trabalho, que, somado à distância do local de trabalho da residência da trabalhadora torna inviável o deslocamento durante a jornada laboral e por conseguinte, a manutenção dos benefícios do aleitamento exclusivo e aos cuidados com a criança após o período da licença-maternidade.

Importante frisar que as proteções em destaque tutelam apenas trabalhadoras com vínculo formal de trabalho e ainda assim, por tempo limitado, restrito ao período inicial da procriação1, ficando desprotegidas, portanto, as mulheres em situação de informalidade, que não gozam de qualquer tutela legislativa que lhes assegure segurança financeira ou assistencial para manutenção do cuidado com a prole, o que por óbvio, impõe o retorno ainda mais cedo ao trabalho.

Nesse particular, os números comprovam o tratamento cruel deferido pela sociedade às mães. Para além da já conhecida desigualdade de gênero na composição do mercado de trabalho, em que, a participação masculina é de 19,2% superior à inserção das mulheres, o índice de discrime é ainda mais acentuado quando se analisa a condição das mães com filhos até 3 anos, com franco prejuízo às mulheres negras.

Para mulheres sem filhos, segundo dados do IBGE2, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho foi de 72,8% para mulheres brancas e 63%, para mulheres negras, percentual que reduz drasticamente quando se trata das mulheres com filhos na idade até 3 anos, em que o nível de ocupação no mercado de trabalho cai 54,6% para as mulheres negras e 67,2% para mulheres brancas, o que revela que um vasto contingente de mães são alijadas de proteção estatal.

Sendo o trabalho formal meio principal de inserção das mulheres pobres na sociedade, o que se nota é um franco comprometimento do acesso à cidadania, em especial, às mulheres negras e pobres, compondo um ciclo de precarização e reprodução da pobreza, que afeta gerações.

Em se tratando de mulheres encarceradas, nos termos da lei de Execuções Penais, é assegurado o direito a manter a amamentação exclusiva e estar na presença de seus filhos, porém, conforme se verifica na pesquisa da Fiocruz3, pouquíssimas unidades prisionais estão aparelhadas para o cumprimento do ditame de proteção a maternidade, das gestantes e lactantes.

É certo que, a fim de assegurar concretude aos ditames constitucionais, em 2018, o STF decidiu, por meio do habeas corpus coletivo (HC 143.641), que a gestantes e mães de crianças até 12 anos e que estavam aguardando julgamento teriam o direito da prisão domiciliar e, assim, poderiam permanecer em suas residências acompanhadas de seus filhos.

Existem, ainda, projetos de lei em andamento tendentes a amenizar as desigualdades no que toca a proteção da maternidade, a exemplo do PL 4.768/19 que institui a política nacional de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno, cujos pilares são a garantia do direito da mãe e da criança ao aleitamento materno nos padrões estabelecidos pelas autoridades sanitárias; a promoção da conscientização da sociedade sobre a relevância do aleitamento materno; o estímulo à implementação de medidas que facilitem o aleitamento materno em ambientes de trabalho, lazer e transporte, públicos e privados, unidades hospitalares, educacionais e prisionais, entre outros.

Além deste, somam-se alguns outros, como o PL 1.145/11, que aumenta para 180 dias a licença maternidade das mulheres que trabalham em equipagens das embarcações de marinha mercante, de navegação fluvial e lacustre, de tráfego nos portos e de pesca e o PL 4.837/20 pune com reclusão de um a quatro anos quem proibir ou constranger a mãe no momento da amamentação, em estabelecimento público ou privado.

Já o PL 5.373/20 prevê que a trabalhadora mãe ou adotante possa optar por 120 dias de licença-maternidade com salário integral, como é a regra atualmente vigente, ou então por 240 dias de afastamento com a metade da remuneração.

O título desse artigo, portanto, não é acidental, apesar de todos nós sermos frutos da procriação feminina, o que se vê é um apagamento quanto à dispensabilidade dos cuidados devidos e necessários ao pleno exercício da maternidade, à corresponsabilidade parental e social, como se a filiação e seus respectivos cuidados fossem encargo exclusivo das mães.

É urgente, assim, por imposição constitucional e que sejam asseguras efetivas medidas de conciliação entre gênero e raça, o trabalho e a família, com vistas a tutelar os papéis de mães e profissionais, para tanto indispensável a inserção da figura do pai no contexto familiar, da sociedade, do Estado e da empresa, por meio, dentre outras medidas da disponibilização de serviços e locais destinados aos cuidados infantis e da implementação das licenças parentais.

A despeito dos ditames constitucionais que impõem a necessária concretização de medidas aptas à efetiva proteção à maternidade e a infância, o que se vê, pela própria inércia legislativa em aprovar pleitos dessa envergadura, afinal, todos os projeto de lei citados ainda se encontram em tramitação, é que a realidade fática é muito diferente da realidade jurídica, ainda muito tímida em termos de proteção da maternidade e incentivo ao aleitamento materno, portanto, há, assim, um longo caminho de redenção no exercício digno da maternidade.

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1 VAZ, Daniela Verzola et al. Duração do Emprego Formal e Desigualdade de Gênero no Brasil: o caso das famílias de baixa renda. Disponível aqui.

2 IBGE – Instituto brasileiro de geografia e estatística. Estatísticas de Gênero: indicadores sociais das mulheres no mercado de trabalho no Brasil. 2.ed. Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.