Edite: será que a política não tem outra coisa pra fazer não?
Ficar correndo atrás de uma coisa que a gente fuma e ri?
Parece errado perseguir a alegria.
Elisa Lucinda
Na oportunidade que tenho de escrever na Coluna Olhares Interseccionais, no Julho das Pretas, busquei inspiração em Elisa Lucinda para abordar um tema visceral para a sociedade brasileira, ou seja, a guerra às drogas.
Elisa Lucinda, como se sabe, é poeta, atriz, escritora, jornalista, professora e cantora1. O que impressiona em seus textos e em seu talento comunicacional é a capacidade de falar de coisas complexas de maneira delicada, didática, de modo a favorecer a compreensão.
Sua escrita e sua pessoa é um desvelar em todos os sentidos. Certa feita, assisti com um amigo um show de Elisa Lucinda no Teatro Café Pequeno. Entre uma música e uma poesia, Elisa explicava as coisas como professora que é. Dizia de como o Brasil, por vezes, revela-se autodestrutivo e produz inimigos internos combatendo o que lhe é essencial. Associou esse fenômeno político a uma doença autoimune. Impressionado, meu amigo me afirma que, naquela noite, conseguiu compreender perfeitamente o conceito de doença autoimune. Ela é assim. Fala de política e ensina medicina. Uma sina? De alguém que, desde menina, brinca com rima? Essa é Elisa Lucinda, uma das mais proeminentes escritoras do Brasil.
Em seu “Livro do avesso: o pensamento de Edite”2, a própria mãe de Horizontina conta a Edite que a cabelereira Marinês delata que sua filha Horizontina fumava maconha. A mãe, então, teve como certo que se sua filha, que é seu grande amor, usa maconha, ela então deveria provar também, porque deveria ser algo bom.
Na trama, então, a mãe de Horizontina experimenta pela primeira vez maconha. Disse não ter sentido nada e, como lhe faltava sabão, precisou ir ao mercado. Volta espantada porque pôs-se a rir das coisas mais comuns que há muito faziam parte de sua rotina, como encontrar a caixa do pequeno supermercado que frequenta. “Filha de Deus, não quero mais saber desse negócio não, gente!!” Exclama e prossegue: “Que vergonha. Paguei rindo, vim andando rindo pela rua. Ninguém entendeu nada”. A mãe, sábia, então conclui: “Fiquei pensando, Edite: será que a polícia não tem outra coisa pra fazer não?! Ficar correndo atrás de uma coisa que a gente fuma e ri? Parece errado perseguir a alegria”.
Não pude ler esse texto singelo sem pensar na tragédia em vários atos intitulada “Guerras às Drogas”, escrita pelos interesses econômicos, com cenografia, iluminação e roteiro elaborados pelo racismo. É... um olhar interseccional sobre a política de drogas nos revela que classe e raça são determinantes nesse enredo.
Como ensina o juiz e professor Valois, “Em razão de as drogas serem um objeto, mercadoria, qualquer combate que se trave ao seu redor terá objetivos pessoais e, como vítimas, pessoas, pois drogas não andam, não falam nem têm desejos”3. Em sua tese de doutorado, informa o pesquisador do Amazonas que, antes de proibir o ópio, no século XVII, a China proibiu o fumo do tabaco, hábito levado pelos portugueses. Nesse período, a racionalidade empregada pelo sistema punitivo se traduzia na regra de que os fumantes eram decapitados4.
Um século depois, a China passou a proibir o ópio. O argumento era de que a importação do produto, em razão do aumento do consumo, desequilibrou a balança comercial. Em 1729, com o novo cenário legal, inicia-se a corrução de funcionários para permitir o comércio ilegal. Os males da proibição são sempre maiores5.
Nos Estados Unidos, no século XIX, a proibição do ópio foi impulsionada pela xenofobia. Chineses tinham ido para os EUA para o trabalho nas ferrovias. Quando o serviço acabou, tornaram-se mão de obra excedente, ou mão de obra concorrente. A proibição do ópio era a forma de controle dos indesejáveis. A técnica discriminatória não era disfarçada. Em 1890, o Congresso Federal Americano aprovou a lei que “permitiu a cidadão americanos a elaboração do ópio para fumar”. Valois revela que às classes privilegiadas, historicamente, gozam da tolerância tanto para o uso, quanto para o abuso das drogas6.
Essa questão discriminatória fica muito evidente na forma violenta, ou não, com a qual se reprime lugares indigitados com propícios ao consumo de drogas. O baile funk é palco de pancadões que vão além da questão sonora. Trata-se de pancadões das forças policias repressoras dos bailes nas comunidades. A mesma violência não se registra na repressão do êxtase, droga típica das festas raves. Claro, festa rave não é coisa de preto periférico. Devo registrar aqui que não tenho o propósito de expandir a violência dispensada aos bailes funks para as festas raves. A ideia é de que, seja para branco, seja para preto, “parece errado perseguir a alegria”.
O fato é que morre muito mais gente em razão da guerra às drogas do que propriamente dos danos a saúde decorrentes do uso abusivo das drogas. Policiais, transeuntes, crianças, viciados, traficantes, basicamente todos pretos e pobres, ou “quase pretos de tão pobres”, são os alvos dessa guerra7. Como diz Emicida, existe “pele alva e pelo alvo”8.
Parece errado perseguir alegria. Porém, pior ainda, é proibir saúde. Note-se que várias famílias padecem com graves problemas de saúde que podem ser tratados com canabidiol.
Nos registros forenses, sabe-se da história de uma família do Distrito Federal que sofria com uma criança acometida por graves crises convulsivas e que chegou a ter 60 crises convulsivas por mês, o que lhe retirava as conquistas adquiridas em quatro anos de vida, como andar, sorrir, segurar brinquedos.
Em 11 de novembro de 2014, a criança tomou pela primeira vez o canabidiol. O medicamento foi o único que conseguiu controlar as crises convulsivas que acometiam a menina desde os 40 dias de vida. A cannabis sativa é importante no tratamento de epilepsia severas.
A família do Distrito Federal fez as primeiras importações do canabidiol ilegalmente. Posteriormente, conseguiram uma decisão judicial que garantiu a importação do medicamento. Felizmente, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando a possibilidade de importação direta do produto, como no caso de tratamento para paralisia cerebral grave (RECURSO ESPECIAL Nº 1.657.075 – PE).
De igual modo, a Corte Superior, através de sua Sexta Turma, por unanimidade, concedeu salvo-conduto para garantir a três pessoas que possam cultivar Cannabis sativa (maconha) com o objetivo de extrair óleo medicinal para uso próprio, sem o risco de sofrerem qualquer repressão por parte da polícia e do Judiciário.
RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE. (RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 147169 – SP)
Parece óbvio que se o suposto bem jurídico tutelado na Lei de Drogas, o que se diz proteger com ela, é a saúde pública, o uso medicinal de drogas não pode configurar uma conduta material e penalmente típica.
Por fim, também decidiu o Superior Tribunal de Justiça que os planos de saúde devem custear medicamento à base de canabidiol, com importação autorizada pela Anvisa9.
Como destaca Adriana Facina, a literatura é perfeitamente utilizável para as pesquisas no campo das ciências sociais, seja utilizando a obra literária como fonte, seja fazendo da própria criação literária objeto de investigação10.
Não sei se os juristas andam lendo Elisa Lucinda. Mas folgo em ver uma jurisprudência menos careta. A literatura ilumina, Elisa Lucinda inspira:
Ela é assim.
Fala de política e ensina medicina.
Sua sina.
Alguém que desde menina brinca com rima.
Ela faz da rotina a arte de resistir.
Precisa, espirituosa,
Brilha impiedosa sobre os racistas.
Encanta aliados,
Inspira os filhos da África.
Seduz, conduz, reluz e sorri.
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1 LOPES, Nei. Afro-Brasil Reluzente. 100 Personalidades notáveis do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019, p. 173-175.
2 LUCINDA, Elisa. Livro avesso: o pensamento de Edite. Rio de Janeiro: Malê, 2021, p. 83-84.
3 VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 35.
4 VALOIS, op. cit., p. 36.
5 VALOIS, op. cit., p. 37.
6 VALOIS, op. cit., p. 75-76.
7 Referência a Música Haiti do Caetano Veloso.
8 Referência a Música Ismália de Emicida.
9 Disponível aqui.
10 FACINA, Adriana. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 43-44.