Olhares Interseccionais

Violência contra a infância e maternidade compulsória: A cumplicidade do sistema de Justiça

A sociedade e o Estado querem compelir as mulheres a serem mães, com o controle social da sua capacidade reprodutiva, no entanto, não entregam a contrapartida necessária para as obrigações existentes na nossa CF/88 que determinam a proteção integral da maternidade e da infância.

27/6/2022

A maternidade compulsória é uma realidade incômoda e ao mesmo tempo hipócrita. A sociedade e o Estado querem compelir as mulheres a serem mães, com o controle social da sua capacidade reprodutiva, estabelecendo medidas punitivas para quem deseja interromper a gravidez. No entanto, não entregam a contrapartida necessária para as obrigações existentes na nossa CF/88 que determinam a proteção integral da maternidade e da infância.

Recentemente, notícias na imprensa chocaram o país com o constrangimento infringido a uma criança de 10 anos que procurou o serviço público de saúde para realizar a interrupção de uma gravidez oriunda de violência sexual. A questão fora encaminhada indevidamente ao sistema de Justiça, o que resultou no desastroso encaminhamento da criança para um abrigo, com o objetivo de que mantivesse o máximo possível a gestação até o parto, a despeito de não ter vontade consciente, condições físicas e psicológicas para elaborar este tipo de decisão.

A intervenção realizada neste chocante caso concreto denota a existência de influencias morais, religiosas e ideológicas no âmbito do judiciário e do sistema público de saúde, as quais custaram a coerção indevida de uma criança a manter uma gestação indesejada, fruto de violência sexual.

Nos termos da convenção de Belém do Pará, toda relação sexual realizada com menores de 14 anos deve ser entendida como violência sexual. O nosso CP disciplina a questão de maneira muito clara, assim como é extreme de dúvidas a autorização para a interrupção da gravidez a qualquer tempo nas hipóteses permissivas do chamado aborto legal.

Importante ressaltar que não há qualquer marco temporal para a realização do procedimento nas hipóteses de estupro e inviabilidade da vida, a despeito de hoje termos algumas medidas administrativas do ministério da Saúde1 sugerindo um marco temporal para a execução do procedimento.

Na situação noticiada semana passada, no âmbito do TJ/SC, verifica-se, ainda, o descumprimento das recomendações legais e internacionais com a adoção de perguntas e sugestões inadequadas que comprometeram a legítima manifestação de vontade da criança, bem como o acesso a intervenção de saúde necessária.

Conforme as recomendações da lei 13.43/17, o depoimento prestado perante a autoridade judiciária deve ser acompanhado por profissionais especializados.

A referida lei, além de qualificar como violência psicológica qualquer conduta de manipulação e isolamento da criança ou adolescente, entende como prática de revitimização e de violência institucional este tipo de conduta.

A Constituição Federal informa que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A convenção sobre os Direitos da Criança e seus protocolos adicionais e a resolução 20/05 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas que compõem o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência caminham no mesmo sentido.

Segundo a OMS2, entre 4,7% e 13,2% de todas as mortes maternas são atribuídas a abortos inseguros, o que equivale a entre 13. 865 e 38. 940 mortes causadas anualmente pela não realização de abortos seguros e determina, nesse contexto, que os valores fundamentais de dignidade, autonomia, igualdade, confidencialidade, comunicação, apoio social, cuidados de apoio e confiança são fundamentais para os cuidados no aborto.

Os prestadores de serviços do Sistema Público de Saúde devem considerar as necessidades e prestar cuidados iguais a todos os indivíduos, de modo que a identidade de gênero ou a sua expressão não devem conduzir à discriminação.

A Organização Mundial de Saúde ainda recomenda que o aborto esteja disponível a pedido da pessoa grávida, de modo que o conteúdo, a interpretação e a aplicação da lei e das políticas baseadas em fundamentos devem ser revistos para garantir a conformidade com os direitos humanos.

Neste contexto, os fundamentos devem ser interpretados e aplicados de forma compatível com os direitos humanos e a interrupção da gravidez deve estar disponível nas situações em que levar uma gravidez até ao fim causaria dor ou sofrimento substancial à pessoa grávida, o que inclui a hipótese em apreço em que a gravidez é o resultado de violência sexual, bem como quando a vida e a saúde da pessoa grávida estão em risco.

Configura-se violação de direitos reprodutivos e sexuais, portanto de direitos humanos, a exigência de requisitos processuais ou burocráticos para “provar” a ocorrência das hipóteses permissivas do aborto legal, tais como a ordens judiciais ou relatórios policiais em casos de violação ou agressão sexual.

Não é novidade que aborto legal sofre entraves em nosso país, por conta de investidas sistemáticas de grupos conservadores. Tampouco não é a primeira vez que uma menina vítima de estupro é obrigada a manter uma gestação por conta de ingerência do sistema público de saúde chancelada pelo judiciário.

No entanto, tais ilegalidades devem continuar sendo combatidas pela sociedade civil, entidades de defesa dos direitos humanos, movimentos sociais e atores do sistema de justiça, de modo que o sistema de saúde deve cumprir os ditames da Lei e não submeter ao crivo do judiciário a decisão pela interrupção da gravidez nas hipóteses permissivas do aborto legal.

Segundo dados do 15º anuário da segurança pública3, mais da metade das vítimas de violência sexual que chegam até as delegacias de polícia tinham 13 anos ou menos. Entre as vítimas de 0 a 19 anos, o percentual de crimes com vítimas de até 13 anos subiu de 70% em 2019 para 77% em 2020.

Eis uma conta que não fecha, que se reveste em um grande paradigma da nossa sociedade:  o controle dos corpos de mulheres e meninas, com o estabelecimento da maternidade compulsória e ao mesmo tempo o abandono da proteção da infância e juventude e a proteção integral da maternidade. Contradições que causam revolta, perplexidade para quem está no front de defesa dos direitos humanos de mulheres e crianças.

_____

1 Cartilha do aborto legal. 

2 Disponível aqui.

Disponível aqui.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.