Olhares Interseccionais

O Supremo Tribunal Federal tem uma fácil decisão pela frente: notas sobre racismo estrutural e a ADPF 973

O STF tem uma fácil decisão pela frente. Vinícius Assumpção comenta a ADPF que pede o reconhecimento do racismo estrutural no Brasil.

25/5/2022

"Aqui, lamentavelmente, falaremos de um
projeto do Estado brasileiro que opera para nos
matar, um a um, uma a uma. Nos matam à
bala, de fome, por descaso, nos torturam, nos
aprisionam, nos adoecem física e mentalmente.
Arrancam de nós nossos pedaços, nossas
alegrias, partes de nossas famílias. Ferem
nossos ancestrais, nossa cultura. Destroem
nossa terra, nossos quilombos, nosso passado.
Invadem nossas casas, instalam o terror, nos
tiram o sossego. Não reconhecem nossa
existência. Negam a nós um futuro".

[Petição inicial da ADPF 973]

No dia 13 de maio de 2022, foi entregue ao Supremo Tribunal Federal uma importante ação: a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 973. A ADPF, como é chamada, surge de iniciativa da Coalização Negra por Direitos1, tendo sido subscrita por sete partidos políticos. Poderíamos discutir como o direito é (também e sobretudo) uma rede de obstáculos e amarras sutis, a ponto de uma ação dos movimentos negros precisar ser apresentada formalmente por partidos políticos que – sabemos! - são dirigidos por pessoas brancas. Mas não falaremos disso.

É a primeira vez que o Judiciário brasileiro está sendo provocado a reconhecer o "Estado de Coisas Inconstitucional fundado no racismo estrutural e institucional"2.

O ECI é um legado jurisprudencial da Corte Constitucional Colombiana, firmado na "Sentença de Unificación" 559, em 1997; entre nós, repercutiu quando o STF foi chamado a decidir sobre a falência do sistema carcerário do Brasil, na ADPF 347. Agora o pedido é outro: a declaração judicial de que atos comissivos e omissivos do estado brasileiro têm impacto negativo diferenciado sobre a população negra, razão suficiente para implementação de medidas reparatórias concretas e urgentes.

O documento entregue ao Supremo teve a difícil missão de dizer e redizer o óbvio, e o fez de forma brilhante. Estão expostas, ao longo das 63 páginas da petição inicial, as inúmeras formas pelas quais nós, pessoas negras, vivemos sob "o medo de abreviamento de nossas vidas"3. Aliás, é sobre isso que esta Coluna vem falando em quase todos – senão todos – os artigos que aqui escrevemos. Estão desnudadas as violências diuturnas que nosso povo vem sofrendo, com apontamento específico de como o projeto permanente de aniquilação do povo preto tem sido exitoso, minando direitos constitucionais expressos. A ADPF escolheu como eixos o direito à vida, à saúde e à alimentação digna, o que permite explicitar as desigualdades impostas às pessoas negras no Brasil. Todos os marcadores sociais do “nosso” país revelam o continuum desse genocídio.

Se a ação é precisa nos seus fundamentos, ainda mais acertados são os pedidos, compatíveis com o descaso estatal com a população negra. O pedido central é de implementação de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à Política de Morte à População Negra. E como planos já houve aos montes, declinou-se mais de uma dezena de diretrizes, das quais se destacam (i) a determinação de que planos de segurança nacional, estaduais e municipais prevejam, necessariamente, ações concretas para a redução da violência policial e letalidade, estabelecendo protocolos para abordagem policial e uso da força; (ii) a adoção de políticas de proteção do exercício dos direitos políticos de pessoas negras, para mitigação da violência e responsabilização por agressões praticadas; (iii) a previsão de conteúdo voltado às relações raciais e enfrentamento ao racismo institucional nos cursos de formação para integrantes das agências de segurança pública; (iv) a garantia de atendimento a vítimas do racismo institucional, prioritariamente mães e vítimas órfãs; (v) a proteção de espaços de exercício da fé de religiões de matriz africana; (vi) a garantia do direito de alimentação, seja através da ampliação do Programa Restaurante Popular, seja através de um Plano que contemple a segurança alimentar da população negra, povos e comunidades tradicionais; (vii) a determinação da tramitação prioritária – em regime de urgência – de projetos de lei que tratem do direito à alimentação, segurança alimentar e nutricional, renda básica e programas de transferência de renda.

A disseminação da expressão "racismo estrutural", especialmente nos últimos 5 anos, tem servido indevidamente a uma branquitude que busca se eximir de toda responsabilidade, tratando as opressões raciais como um legado histórico insuperável. Ante a sua enormidade, nada há a fazer, pensam. Essa constatação-letargia não nos serve – e não a admitiremos.

Os fundamentos teóricos e empíricos que atestam a política negrodesumanizadora do estado brasileiro está agora submetida ao Supremo Tribunal Federal. Uma decisão fácil, talvez a mais fácil das decisões. Ou seria possível o direito negar a criança negra em insegurança alimentar, a mulher preta sem atendimento de saúde, a mãe preta chorando a execução do seu filho, o homem preto torturado nos cárceres-porões deste país? Estaremos atentos, e cientes de que nosso novo 14 de maio é a batalha pela implementação das medidas impostas por essa (ansiada) decisão – enquanto travamos nossas tantas outras lutas diárias, apesar e para além do estado brasileiro.

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1 Conheça mais sobre a Coalização aqui https://coalizaonegrapordireitos.org.br/

2 Trecho da ADPF 973.

Trecho da ADPF 973.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.