A gente grita "fogo nos racistas" sempre que pode, mas a gente não bota fogo nos racistas.
Eles não gritam fogo nos pretos, mas eles botam fogo nos pretos sempre que podem.
Hércules Marques
Livro: Jovem preto rei – Nascido para vencer
"Um boy branco me pediu um high five, confundi com um Heil Hitler..."1 12 de março de 2022, o plantão da enfermeira socorrista do SAMU, Laura Cristina Cardoso, foi interrompido pelo racismo, ecoado livremente no lar da família tradicional brasileira. A dedicação ao trabalho na área de saúde, capaz de salvar a vida do idoso de 90 anos, vítima de Acidente Vascular Cerebral (AVC), talvez tenha ferido mortalmente a vida da profissional.
Em relato pelas redes sociais, ela desabafou: "Entro no quarto onde está a vítima e uma senhora que meio desesperada grita: 'E agora, filho? Ela é negra'". No que ele respondeu: "Tudo bem, mamãe. Ela está usando luvas". A vítima foi devidamente atendida pelas minhas mãos negras enluvadas e deixada aos cuidados do hospital privado que a família preferiu."2
Racismo, este é o crime perpetrado há 522 anos, mas com absolvição sumária dos acusados. Um país construído por mãos negras e indígenas, relegados a objetos pela elite aristocrática, que faz jorrar sangue negro a cada 23 minutos. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas".
Os/as profissionais de saúde foram responsáveis por salvarem este país, colapsado pelas práticas genocidas do (des)Governo Federal, somado à pandemia do coronavírus. A maioria dos/as que morreram nos hospitais foram pessoas negras, como negras também eram a maioria das mãos que faziam o (im)possível para salvar as vidas. Lidaram com a sobrecarga de trabalho, distanciamento da família, doenças de ordem psicológica, solidão, atrasos nos salários, corpos empilhados, mortes, valas abertas, sacos pretos, caixão e vela. Mas o que incomoda o sistema é o "fogo nos racistas".
No dia 12 de abril de 2022, um mês após a enfermeira do SAMU ter sido hostilizada enquanto exercia o seu trabalho, Rafaela Nascimento, enfermeira negra, foi condenada em uma ação de indenização. Desta vez, foi o sistema de justiça que se arvorou a tentar frear o grito de guerra de quem por muito tempo foi silenciado/a. Rafaela foi condenada a pagar a quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), bem como excluir das redes sociais as publicações vinculadas à imagem de uma pessoa segurando cartaz com a máxima: "fogo nos racistas".
Isto porque, a sua irmã acusou a funcionária da loja autora da ação de tê-la agredido e proferido injúrias de cunho racial, tal qual "negra, cadela, careca". Houve o registro do Boletim de Ocorrência, mas o representante do Ministério Público requereu o arquivamento do inquérito policial em relação à injúria racial. Este ato levou Rafaela a relatar todos os fatos em suas redes sociais, gerando repercussão e protestos em frente à loja.
A loja, ora autora, ingressou com ação judicial e o pedido foi julgado improcedente, em 1ª instância. Após recorrer da decisão, obteve êxito, pois de acordo com o desembargador, "a publicação em rede social que atribui à apelante (loja) a responsabilidade por prática racista ou injuriosa, incitou a prática de crime (fogo nos racistas)". Vejam bem, o suposto crime de racismo praticado pela funcionária da loja, foi arquivado, mas o cartaz publicado nas redes sociais, segundo o acórdão, "configurou o dano moral praticado contra a pessoa jurídica".
"Estamos de olho Eye of tiger, eye of tiger, eu sigo de olho. Olha eu olhando pros fascista, igual Floyd olha pro McGregor, se num entendeu o que eu tô falando, eu devo 'tá falando grego, ó."3
"Na hora do julgamento, Deus é preto e brasileiro".4 No mesmo país em que os governantes incitam execuções sumárias, "é só mirar na cabecinha e atirar, pra não ter erro", o cristão, ex-militar e presidente da República, diz que "não é coveiro". Com a marca de 584.421 mortes registradas no Brasil, o Messias exclamou: "Covid apenas encurtou a vida delas por alguns dias ou algumas semanas". Mas é o "fogo nos racistas" que incomoda o sistema.
No país em que corpos negros são abatidos utilizando-se do slogan "bandido bom, é bandido morto", as altas taxas de letalidade policial gritam sobre absurdos, conveniências e arquivamentos dos processos, chancelados pelo sistema de justiça, sob a alegação de legítima defesa. Mas uma mulher preta é condenada em 2ª instância por "exercício arbitrário da justiça com as próprias mãos, pois inaceitável em um estado democrático de direito", postar um cartaz com a frase "fogo nos racistas".
E olhe que a população negra só grita por reparação... "Firma, firma, firma, fogo nos racistas."5
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1 Djonga, Olho de Tigre, 2017.
2 Disponível aqui.
3 Djonga, Olho de Tigre, 2017.
4 Djonga, Olho de Tigre, 2017.
5 Djonga, Olho de Tigre, 2017.