Olhares Interseccionais

Ocupar todos os espaços?

Ocupar todos os espaços?

25/4/2022

Quando o assunto é negritude, parece que existe uma sonoridade consistente na frase "vamos ocupar todos os espaços". Ressoa por um longo tempo em nossas cabeças e nos faz aceitar vários tipos de convite. Inclusive nos faz pensar que certas solicitações são irrecusáveis, e que, se necessário for, a vida pessoal deve ser sacrificada para garantir a presença do corpo negro, do corpo trans, dos múltiplos corpos existencialmente mutilados, que, para espanto de muita gente, são núcleos de falas expressivas.

 Que são esses espaços? Há jardins encantados neles? Por que, então, impõem uma atração quase fatal que dificulta o pronunciamento do monossílabo "não"?

A injunção de "ocupar todos os espaços" até combina com o ficcional grito de guerra "Atacar!!!", e talvez nem seja tão ficcional. Continuamos a vivenciar uma guerra racial, cuja expressão extermínio da juventude negra condensa as cenas opressoras do cotidiano brasileiro. Por isso, é preciso sim ter estratégias para "saber ocupar", para que não nos tornemos algozes de nosso mundo interior. Há de se cultivar algum grau de lucidez — nem sempre possível — que permita seguir adiante, sonhar com o afago que acalma a inquietude e ter espaço mental para imaginar belos afrofuturos, com matas recheadas de árvores da estação transcendental chamada Alegria.

Ocupar todos os espaços até indica um sussurrar poético, um mantra para novas conquistas acadêmicas, cargos de diretoria, títulos de doutoramento. Talvez seja um aceno para que seja reescrita uma história crítica do tempo histórico negro. Ocupar todos os espaços é um convite à formação de novos quilombos — urbanos, rurais, ancestrais, de uma magia preta reluzente. A dimensão coletiva do amor-negro é herança próspera de Palmares.

Ocupar todos os espaços pode ser, porém, uma sutil armadilha para o ser negro quando visualizado em sua existência individual. Um convite à depressão, ao pânico, ao vexame público — será que o tapa de Will Smith em Chris Rock foi só um tapa de Will Smith em Chris Rock? — e, infelizmente, ao suicídio. É que o racismo também opera aproveitando-se de discursos negros contra a própria negritude. Para que se compreenda um pouco mais disso, duas perspectivas oferecem uma visão concreta do que o parâmetro de vida "ocupar todos os espaços" pode causar no psiquismo negro. A forte ideia de uma autoimposição de um sacrifício negro heroico e uma ansiosa aspiração a um mundo — e, portanto, um futuro — racialmente equânime para pessoas negras.

De certo modo, paira no ar a ordem diária ao negro/a, até mesmo para os/as de classe média, que é preciso se privar de toda sorte de prazer e de alegria, ainda que ínfima, para ser alguém num mundo predestinado/a por brancos e para brancos/as. Com isso,  o/a  negro/a tende a viver num tempo existencial perdido, fractal, com sensações fantasmagóricas.  Isso porque o/a negro/a jamais será uma peça de encaixe perfeito em um mosaico branco. Títulos, dinheiro, fama, cargos públicos e até mesmo a própria inteligência parecem gerar uma sensação de equidade racial a esse negro/negra que passa a viver em uma classe econômica branca. Nada mais falso.  

No fundo, na compleição íntima de sua subjetividade, sabe que será um estranho, sabe que terá que optar por um sorriso artificial, de exercer uma tolerância que maltrata sua alma a cada palavra mal colocada, a cada piada sentida na pele, a cada pergunta que lhe é direcionada como se fosse sempre um serviçal. E é por isso que esse processo de afirmação das subjetividades negras não pode acontecer no campo da solidão, sem partilhar dores e alegrias com os outros integrantes de um quilombo itinerante que também busca sua afirmação. 

De nada adiantará tanto desejo pelo sucesso ou por mudança de patamar social, se ao final a mente não vai suportar o peso de desconhecer a si próprio, de negar a própria identidade, a vida em seus pequenos detalhes, e sentir, mesmo com muita gente de seu lado, mesmo com muitos amigos/as querendo te abraçar, que a desconfiança sobre o humano se tornou o valor referência de sua vida. E desconfiar de tudo e de todos é uma das sequelas inevitáveis de quem sente cotidianamente o gélido tapa que o racismo dá em seus rostos, quando nem sequer teve tempo para o matinal gole de café.  

Nas ondas rimadas de Mano Brown, que se diga que há muitos/as negras e negros dramas no Brasil, que "entre o gatilho e a tempestade" têm sempre que provar que são homens e mulheres e "não um covarde".  E se o mito sacrificial heroico se coloca, de maneira geral, sobre as cabeças negras, o que dizer especificamente das mulheres negras, reduzidas, por alheios discursos produzidos sobre si, a uma noção de mulher guerreira que lhes anula, que assassina sua pulsão de vida. Mesmo as intelectuais negras, que eventualmente desfrutam de algum conforto emocional e material, ainda têm que exercer jornadas multifuncionais (mãe, trabalho, lar, relação amorosa, escritório, palestra).  Costumam, ainda, ser violentamente criticadas nas redes sociais pelas suas opções teórico-vivenciais e por convidarem a sociedade a refletir sobre o racismo patriarcal que fundou o Brasil.

Sossego não é uma palavra que combina com racismo. Se pessoas brancas podem experenciar um sórdido conforto racial, no sentido de normatizarem a estética, o ato de pensar, a religiosidade e a própria experiência do amor, padronizando-os ao seu modo, ao negro/a a vida tem sido uma terra em sangrenta disputa. Se por esse mesmo conforto racial, essas brancas pessoas se colocam na autoritária posição de criticar — com seus achismos e intuições incoerentes — a densa produção intelectual de pensadoras e pensadores negros/as, julgando-as inapto/as para uma discussão científica, ao negro a possibilidade de uma realização acadêmica e profissional — sem precisar vender sua própria dignidade —  tem gerado muita angústia e sonos intranquilos. Muitos são os exemplos de disparidade racial e, portanto, de tormentos existenciais.  O racismo é uma (des)ordenada escavadeira emocional na subjetividade negra.

Nessas letras finais, há quem, com o gosto de maldade nos lábios, possa concluir que a proposta de reflexão deste texto é a defesa do conformismo negro e de uma predestinada mediocridade racial. Esta seria, no mínimo, uma conclusão erradíssima. Quem por esses dias neste mundo chegar não terá a opção de escolher por viver com ou sem racismo, pois esta sanguinária ideologia parece ser transhistórica. E como o racismo não irá deixar de existir por agora, nosso propósito é destacar que uma de suas armadilhas é fazer com que o negro/a acredite que tudo é uma questão de classe e que com méritos pessoais conseguirá vencer todas as barreiras. É a partir daqui, sob a ilusão da meritocracia, que o ciclo da loucura começa a tomar conta da saúde mental de muitas pessoas negras, que acham que, sozinhas, conseguirão dar conta de uma estrutura feita para bloqueá-las.

Ocupar todos os espaços? Sim. Propomos a conjugação dessa frase com outra que costuma ser entoada pela intelectual Jurema Werneck: "nossos passos vêm de longe". Devemos ocupar todos os espaços a partir de quilombos1 e diversas estratégias negras coletivas, com os pés fincados na ancestralidade negra, que, para além de uma dimensão espiritual, está repleta de exemplos de vivências comunitárias robustas, e que não foram desatentas com o autocuidado e a dimensão relacional de nossas emoções. Seja para conseguir objetivos importantes para a representatividade negra, ainda que visível inicialmente no plano individual, seja para desfrutar de conquistas até então ditas impossíveis, não podemos desistir de dialogar com os nossos e as nossas, em especial os/as mais velhos/as.

Basta de tanta solidão negra!

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1 Uso a palavra quilombo em uma dimensão poético-política, como convite a uma efetiva solidariedade negra cujo objetivo maior é alcançar uma real dignidade racial nos diversos espaços sociais.

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.