Chegamos novamente em mais um 8 de março, data que marca a memória de luta por direitos, e sobretudo, pela vida das mulheres.
Ainda vivenciando um contexto pandêmico de incertezas, adentramos neste mês dedicado a debates relacionados às mulheres com a sensação de que há muito por se realizar, combater e conquistar. Há também uma sensação de certa paralisia no andamento das coisas.
Existem ainda diversos conflitos e divergências internas que precisam ser resolvidas, a começar pela necessária visibilidade e equalização em torno da própria categoria coletiva denominada “mulheres”. Quem são as mulheres que possuem efetivamente acesso a direitos? Será possível efetuar uma análise universalizante sobre os problemas e dificuldades que precisam ser enfrentados?
A esta altura do debate já sabemos que a resposta é não, pois ao se estabelecer a análise sob o ponto de vista interseccional, é possível constatar que não há equidade e visibilidade entre mulheres cis, trans, brancas , negras, indígenas, mulheres com deficiência, urbanas e rurais, etc.
Contudo, neste contexto, é preciso lembrar da capacidade transformadora das mulheres em movimento. Ainda que sejam heterogêneas em seus interesses e dificuldades, as mulheres quando estão em movimento e politicamente organizadas tem a capacidade de transformar realidades. Os direitos (ainda insuficientes), usufruídos hoje decorrem de um histórico de luta e articulação política de mulheres que utilizaram-se de estratégias diversas.
Existiram aquelas que sentaram à mesa com os mandatários do poder e negociaram termos dos seus direitos e políticas públicas, (o chamado Lobby do Batom, ou advocacy feminista, como alguns atualmente preferem denominar); outras foram às ruas reivindicar e denunciar as suas opressões de maneira mais ostensiva e aguerrida; algumas “infiltraram-se” nos órgãos e entidades públicas estatais realizando o que se chamou de “feminismo de governo”, com a elaboração de normas e proposições que buscavam minorar as desigualdades e enfrentar temas espinhosos como a violência contra a mulher e a saúde reprodutiva; existiram, ainda, aquelas que travaram debates acadêmicos importantes sobre as perspectivas do gênero e sua superação.
O fato é que mulheres unidas em coalização movem o mundo e quero aqui lembrar de um importante legado que temos sobre a luta das mulheres: A contribuição das mulheres para os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1988, através do documento chamado Carta Das Mulheres Ao Constituinte e o trabalho realizado pelo CNDM- Conselho Nacional de Direitos da Mulher.
Trata-se de um fato histórico relativamente desconhecido, ou pouco mencionado, conforme aponta a Professora Salete Silva1 na sua pesquisa extremamente necessária para o aprofundamento sobre o tema: “a historiografia constitucional do Brasil, assim como a literatura jurídica e política nacional, embora tenha registrado e analisado importantes aspectos do último processo constituinte brasileiro, ignorou por completo a contribuição feminina no âmbito das discussões que culminaram com a ampliação da cidadania e a consequente constitucionalização dos direitos das mulheres no país. A ausência do mencionado conhecimento contribui para a chamada cegueira de gênero nos mundos jurídico e político da nação que, por sua vez, concorrem para a manutenção do status quo, onde a visão hegemônica, que se pretende neutra e universal.”
Nesse contexto, importa ressaltar a influência das mulheres dos movimentos sociais, parlamentares, acadêmicas, dentre outras na atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão federal criado para atender as demandas dos movimentos sociais de mulheres que entendiam que no contexto da reconstrução democrática pré-constituínte, era preciso haver a observância da agenda de igualdade.
O CNDM fora organizado com diversas comissões temáticas, com representações dos interesses diversos, a exemplo da comissão de saúde, educação, trabalho, mulheres negras, mulheres do campo etc. Este órgão foi o responsável por criar a campanha “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”.
Em 26 de agosto de 1986, mulheres reunidas num encontro nacional estabeleceram alguns princípios e reivindicações gerais. Para efetivação do princípio da igualdade, entendeu-se que era fundamental que a gestação da Constituição Brasileira contemplasse princípios como: a necessidade de revogação das classificações discriminatórias; o acatamento, sem reservas, das convenções e tratados internacionais de que o pais fosse signatário no que diz respeito a eliminação de todas as formas de discriminação; reconhecimento da titularidade de direitos aos movimentos sociais organizados, sindicatos, associações e entidades da sociedade civil na defesa dos interesses coletivos;.
Estes são alguns dos princípios da Carta das Mulheres ao Constituinte, um documento histórico cheio de balizas que estabeleceram muitos direitos individuais e sociais que dispomos hodiernamente. A carta fora dividida entre seguintes eixos: Família, Trabalho, Saúde, violência, educação e cultura, violência, questões nacionais e internacionais.
Segundo Silvia Pimentel, esta Carta foi a mais ampla e profunda articulação reivindicatória feminina brasileira. “Nada igual, nem parecido. É marco histórico da práxis política da mulher, grandemente influenciada pela teoria e práxis feminista dos dez anos anteriores.”2
Conforme destaca a ex presidente do CNDM, Jacqueline Pitanguy3, ao longo das três últimas décadas do século XX, e, ainda hoje, existe uma clara conexão entre o ativismo feminista e as mudanças em legislações discriminatórias, proposição de novas Leis, implementação de políticas públicas e resistência aos retrocessos. A modificação de conceitos sexistas do CPB, a edição da Lei Maria da Penha, da Lei do Feminicídio, da Lei do planejamento familiar, bem como o reconhecimento das diferentes formas de família são exemplos de legado deste trabalho desenvolvido no contexto da redemocratização.
No movimento negro tivemos a colaboração nestes trabalhos de nomes como Lelia Gonzales e Beatriz Nascimento.
O legado do Lobby do Batom deve ser valiosíssimo para nós, na medida em que possamos olhar para trás e verificar o que foi possível ser feito por aquelas mulheres em termos de luta articulada, em um contexto em que não havia redes sociais e toda essa comunicação dinâmica e rápida que a tecnologia nos proporciona. Como foi possível mulheres de todo o país, das mais diversas origens e interesses, unirem-se, organizarem-se e articularem juntamente aos mandatários do poder para que a realidade das mulheres pudesse ser transformada através da implementação de diversos direitos?
Em que medida o contexto da Pandemia do Covid-19 arrefeceu os ânimos de articulação das mulheres? Os índices de violência doméstica aumentaram no período da pandemia, contudo, não se verificou a inovação de estratégias para o enfrentamento da violência em rede multidisciplinar durante o período mais gravoso do isolamento social, como pressupõe os mandamentos da Lei Maria da Penha. Instituições como a Defensoria Pública buscaram adaptar-se a esta nova realidade, propondo o atendimento virtual.
Neste contexto, é bem de ver que as novas formas de articulação virtual podem ser um novo caminho para o ativismo, visto que a tecnologia vem moldando inexoravelmente o modus operandi social. Parece ser um caminho sem volta a adoção das redes sociais como meio para a luta por efetivação de direitos e estabelecimento de políticas públicas.
O exercício pleno da cidadania, participação igualitária e diversa das mulheres nos espaços de poder e decisão deve ser um compromisso a ser alcançado neste ano de 2022. Em meio à esperança de um possível contexto pós pandemia, é possível ocorrer a retomada do folego para movimentações sociais, bem como o envolvimento com a efervescência política das eleições político-partidárias do pleito de 2022.
Há que se indagar a quantas anda o percentual de participação de mulheres na política, bem como ainda se estabelecer o devido filtro sobre quais mulheres estão tendo a oportunidade de galgar cargos políticos ou ocupar cargos de poder e decisão, bem como quais mulheres dispõem de efetiva condição de dialogar diretamente com o poder público, efetuando-se o necessário recorte interseccional. Se hoje temos poucas mulheres nestes espaços, mulheres negras, trans e indígenas são ainda mais raras em termos de expressividade numérica.
O ativismo digital hoje se revela um caminho para que possamos transformar realidades e fazer ecoar a nossa voz. Nossa história está repleta das marcas das mulheres em movimento, realizando a mais pura essência do feminismo na prática.
As lutas pela preservação ambiental promovidas pelas mulheres indígenas, a lutas pelo enfrentamento ao racismo e sexismo, justiça reprodutiva, bem como as lutas pelo enfrentamento da violência de gênero travadas pela comunidade feminista devem ser valorizadas, visibilizadas e levadas à frente com as ferramentas possíveis de acordo com o nosso momento histórico atual.
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1 SILVA, Salete Maria da. A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. 2012. 320p. Tese (Doutorado) – UFBA, 2012. Disponível aqui.
2 Pimentel, Silvia. Anais de seminários. Trinta Anos da Carta das Mulheres aos Constituintes: um depoimento entusiasmado e cumplice. Org. Adriana Ramos de Mello. Rio de Janeiro.EMERJ/2018.
3 Pitanguy, Jacqueline. A Carta das Mulheres Brasileiras aos constituintes: Memórias para o futuro. Carta das Mulheres aos Constituintes: 30 anos depois. Editora Makenzie. 2018.