Olhares Interseccionais

O que fizeram as mulheres em movimento ontem e quais os caminhos possíveis hoje

O que fizeram as mulheres em movimento ontem e quais os caminhos possíveis hoje.

8/3/2022

Chegamos novamente em mais um 8 de março, data que marca a memória de luta por direitos, e sobretudo, pela vida das mulheres.

Ainda vivenciando um contexto pandêmico de incertezas, adentramos neste mês dedicado a debates relacionados  às mulheres com a sensação de que há muito por se realizar, combater e conquistar. Há também uma sensação de certa paralisia no andamento das coisas.

Existem ainda diversos conflitos e divergências internas que precisam ser resolvidas, a começar pela necessária visibilidade e equalização em torno da própria categoria coletiva denominada “mulheres”. Quem são as mulheres que possuem efetivamente acesso a direitos? Será possível efetuar uma análise universalizante sobre os problemas e dificuldades que precisam ser enfrentados?

A esta altura do debate já sabemos que a resposta é não, pois ao se estabelecer a análise sob o ponto de vista interseccional, é possível constatar que não há equidade e visibilidade entre mulheres cis, trans, brancas , negras, indígenas, mulheres com deficiência,  urbanas e rurais, etc.

Contudo, neste contexto, é preciso lembrar da capacidade transformadora das mulheres em movimento. Ainda que sejam heterogêneas em seus interesses e dificuldades, as mulheres quando estão em movimento e politicamente organizadas tem a capacidade de transformar realidades. Os direitos (ainda insuficientes), usufruídos hoje decorrem  de um histórico de luta e articulação política  de mulheres que utilizaram-se de estratégias  diversas.

Existiram aquelas que sentaram à mesa com os mandatários do poder e negociaram termos dos seus direitos e políticas públicas, (o chamado Lobby do Batom, ou advocacy feminista, como alguns atualmente preferem denominar); outras foram às ruas reivindicar e denunciar as suas opressões  de maneira mais ostensiva e aguerrida; algumas “infiltraram-se” nos órgãos e entidades públicas estatais realizando o que se chamou de “feminismo de governo”, com a elaboração de normas e proposições que buscavam minorar as desigualdades e enfrentar temas espinhosos como a violência contra a mulher e a saúde reprodutiva; existiram, ainda, aquelas que travaram debates acadêmicos importantes sobre as perspectivas do gênero e sua superação.

O fato é que mulheres unidas em coalização movem o mundo e quero aqui lembrar de um importante legado que temos sobre a luta das mulheres: A contribuição das mulheres para os trabalhos da Assembleia Constituinte de 1988, através do documento chamado Carta Das Mulheres Ao Constituinte  e o trabalho realizado pelo CNDM- Conselho Nacional de Direitos da Mulher.

Trata-se de um fato histórico relativamente desconhecido, ou pouco mencionado, conforme aponta a Professora Salete Silva1 na sua pesquisa extremamente necessária para o aprofundamento sobre o tema:  a historiografia constitucional do Brasil, assim como a literatura jurídica e política nacional, embora tenha registrado e analisado importantes aspectos do último  processo constituinte brasileiro, ignorou por completo a contribuição feminina no âmbito das discussões que culminaram com a ampliação da cidadania e a consequente constitucionalização dos direitos das mulheres no país. A ausência do mencionado conhecimento contribui para a chamada cegueira de gênero nos mundos jurídico e político da nação que, por sua vez, concorrem para a manutenção do status quo, onde a visão hegemônica, que se pretende neutra e universal.”

 Nesse contexto, importa ressaltar a influência das mulheres dos movimentos sociais, parlamentares, acadêmicas, dentre outras   na atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, órgão federal criado para atender as demandas dos movimentos sociais de mulheres que entendiam que no contexto da reconstrução democrática pré-constituínte, era preciso haver a observância  da agenda de igualdade.

O CNDM fora organizado com diversas comissões temáticas, com representações dos interesses diversos, a exemplo da comissão de saúde, educação, trabalho, mulheres negras, mulheres do campo etc.  Este órgão foi o responsável por criar  a campanha “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”.

Em 26 de agosto de 1986, mulheres reunidas num encontro nacional estabeleceram alguns princípios e reivindicações gerais. Para efetivação do princípio da igualdade, entendeu-se que era fundamental que a gestação da  Constituição Brasileira contemplasse princípios como: a necessidade de revogação das classificações discriminatórias;  o acatamento, sem reservas, das convenções e tratados internacionais de que o pais fosse signatário no que diz respeito a eliminação de todas as formas de discriminação; reconhecimento da titularidade de direitos aos movimentos sociais organizados, sindicatos, associações e entidades da sociedade civil na defesa dos interesses coletivos;.

Estes são alguns dos princípios da  Carta das Mulheres ao Constituinte,  um documento histórico cheio de balizas que estabeleceram muitos direitos individuais e sociais que dispomos hodiernamente. A carta fora dividida entre seguintes eixos: Família, Trabalho, Saúde, violência, educação e cultura, violência, questões nacionais e internacionais.

Segundo Silvia Pimentel, esta Carta foi a mais ampla e profunda articulação reivindicatória feminina brasileira. “Nada igual, nem parecido. É marco histórico da práxis política da mulher, grandemente influenciada pela teoria e práxis feminista dos dez anos anteriores.”2

Conforme destaca a ex presidente do CNDM, Jacqueline Pitanguy3, ao longo das três últimas décadas do século XX, e, ainda hoje, existe uma clara conexão entre o ativismo feminista e as mudanças em legislações discriminatórias, proposição de novas Leis, implementação de políticas públicas e resistência aos retrocessos. A modificação de conceitos sexistas do CPB, a edição da Lei Maria da Penha, da Lei do Feminicídio, da Lei do planejamento familiar, bem como o reconhecimento das diferentes formas de família são exemplos de legado deste trabalho desenvolvido no contexto da redemocratização.

No movimento negro tivemos a colaboração nestes trabalhos de nomes como   Lelia Gonzales e Beatriz Nascimento.

O legado do Lobby do Batom deve ser valiosíssimo para nós, na medida em que possamos olhar para trás e verificar o que foi possível ser feito por aquelas mulheres em termos de luta articulada, em um contexto em que não havia redes sociais e toda essa comunicação dinâmica e rápida que a tecnologia nos proporciona.  Como foi possível mulheres de todo o país, das mais diversas origens e interesses, unirem-se, organizarem-se e articularem juntamente  aos mandatários do poder para que a realidade das mulheres pudesse ser transformada através da implementação de diversos direitos?

Em que medida o contexto da  Pandemia do Covid-19  arrefeceu os ânimos de articulação das mulheres? Os índices de violência doméstica aumentaram no período da pandemia, contudo, não se verificou a inovação de estratégias para o enfrentamento da violência em rede multidisciplinar durante o período mais gravoso do isolamento social, como pressupõe os mandamentos da Lei Maria da Penha. Instituições como a Defensoria Pública buscaram adaptar-se a esta nova realidade, propondo o atendimento virtual.

Neste contexto, é bem de ver que as novas formas de articulação virtual podem ser um novo caminho para o ativismo, visto que a tecnologia vem moldando inexoravelmente o modus operandi social. Parece ser um caminho sem volta a adoção das redes sociais como meio para a luta por efetivação de direitos e estabelecimento de políticas públicas.

O exercício pleno da cidadania, participação igualitária e diversa das mulheres nos espaços de poder e decisão deve ser um compromisso a ser alcançado neste ano de 2022. Em meio à esperança de um possível contexto pós pandemia, é possível  ocorrer a retomada do folego para movimentações sociais, bem como o envolvimento com a efervescência política das eleições político-partidárias do pleito de 2022.

Há que se indagar a quantas anda o percentual de participação de mulheres na política, bem como ainda se estabelecer o devido filtro sobre quais mulheres estão tendo a oportunidade de galgar cargos políticos ou ocupar cargos de poder e decisão, bem como quais mulheres dispõem de efetiva condição de dialogar diretamente com o poder público, efetuando-se o necessário recorte interseccional. Se hoje temos poucas mulheres nestes espaços, mulheres negras, trans e indígenas são ainda mais raras em termos de expressividade numérica.

O ativismo digital hoje se revela um caminho para que possamos transformar realidades e fazer ecoar a nossa voz. Nossa história está repleta das marcas das mulheres em movimento, realizando a mais pura essência do feminismo na prática.

As lutas pela preservação ambiental promovidas pelas mulheres indígenas, a lutas pelo enfrentamento ao racismo e sexismo, justiça reprodutiva, bem como  as lutas pelo enfrentamento da violência de gênero travadas pela comunidade feminista devem ser valorizadas, visibilizadas e levadas à frente com as ferramentas possíveis de acordo com o nosso momento histórico atual.

__________

1 SILVA, Salete Maria da. A carta que elas escreveram: a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988. 2012. 320p. Tese (Doutorado) – UFBA, 2012. Disponível aqui.

Pimentel, Silvia.  Anais de seminários. Trinta Anos da Carta das Mulheres aos Constituintes: um depoimento entusiasmado e cumplice. Org. Adriana Ramos de Mello. Rio de Janeiro.EMERJ/2018.

Pitanguy, Jacqueline. A Carta das Mulheres Brasileiras aos constituintes: Memórias para o futuro. Carta das Mulheres aos Constituintes: 30 anos depois. Editora Makenzie. 2018.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.