Olhares Interseccionais

Elza Soares, Cláudia Silva Ferreira e a “arte de brotar flores num chão de pedra”*

Elza Soares, Cláudia Silva Ferreira e a “arte de brotar flores num chão de pedra”*.

14/2/2022

“A vida é uma ilusão linda.
A vida é saborosa e amarga ao mesmo tempo.
A vida para mim é muito rápida.”

“Meu nome é agora.”
(Elza Soares)

“Quando cheguei lá, a minha mãe
‘tava’ caída, deitada no chão, lá.
Não tive nem coragem de tocar na minha mãe.”
(T.F.S, Filha de Cláudia)

“Nós não sabemos momento nenhum que
a senhora tinha vindo sido arrastada.
Saltamos, desembarcamos da viatura,
botamos ela com o maior carinho dentro da viatura
e chegamos no Carlos Chagas.”
(Subtenente G.R.M)

 “Ela era multimulher.”
(A.F.S., companheiro de Cláudia)

“A mulher de dentro de cada um não quer mais silêncio...”1 Ouçam os acordes, a voz rouca e os protestos. Mulheres negras em levante, sob a regência da voz do milênio2 proferem: “Deus há de ser fêmea”3. Silêncio! Elza causou a revolução. E então, no dia 20 de janeiro de 2022, soubemos que a mulher do fim do mundo, finalizou a sua passagem aqui na terra. No retorno ao Orun4, ela pôde confirmar: “Deus é mulher”5! Elza Soares, Deusa Soares, Diva Soares, um talento inenarrável que alcançou os palcos do mundo, depois de uma vida marcada pelo sofrimento.

A menina da Vila Vintém, zona Oeste do Rio.  Aquela, que nos idos dos anos 50, pela primeira vez, apresentou-se publicamente no programa “Calouros em desfile”, na Rádio Tupi, com o intuito de angariar fundos para a subsistência do filho recém-nascido. Enquanto era exibida e as vestes folgadas chamavam a atenção do apresentador, foi surpreendida com a pergunta, em forma de chacota: “De que planeta você veio?”

No mesmo instante e com altivez, como se a resposta já estivesse na ponta da língua, a amefricana Elza Soares não se deixou sucumbir e respondeu: “Eu vim do Planeta fome”! Essa sentença marcou a passagem de Elza por aqui. Nesta pátria mãe nada gentil, que extermina corpos negros desde a infância, apesar de ter ganhado o prêmio, Elza perdeu o filho, que morreu em decorrência de desnutrição. Nas palavras dela, “nada mais duro do que perder um filho e eu perdi três”.6  

A desnutrição infantil é realidade reveladora da desassistência estatal e perpassa pelo que podemos chamar de “deixar morrer”. Tão impactante quanto um tiro de fuzil, que atinge prioritariamente corpos negros, essas violências e violações atravessam as existências negras e indígenas7. Conforme expõe Achille Mbembe, “ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder”.8 Por isso, não deixamos de temer a própria morte, porque neste Brasil estamos por nossa sorte.

E, por falar em mortes decorrentes de ação do Estado, a força motriz de Elza Soares, me fez retornar ao dia 16 de março de 2014. Neste dia, choramos a perde de Cláudia Silva Ferreira. Quase 8 anos separam a morte natural de Elza Soares, aos 91 anos e o homicídio de Cláudia, aos 38 anos de idade, na Comunidade do Morro do Congonha, Rio de Janeiro.

Elza perdeu 3 filhos e os 8 filhos de Cláudia perderam a mãe. Desumanizadas através do sofrimento imposto pelo racismo. Uma mãe que perdeu os filhos e  filhos/as que ficaram órfãos de mãe. Mesma dor, mesma cor. Talvez por isso, “A mulher do fim do mundo” cantou com a voz grave incomparável: “minha voz, uso pra dizer o que se cala...”.

Mas ela nunca se calou, ao contrário, cantou hinos em forma de protesto: “Na avenida, deixei lá, a pele preta e a minha voz, a minha fala, minha opinião”9. Mas não só, antes, em 2002, “Do Cóccix até o pescoço”10, Elza denunciou que “a carne mais barata do mercado é a carne negra, que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico”11.

Assim aconteceu com Cláudia que, antes de ser jogada debaixo do plástico, foi arrastada pelo chão de pedra por mais de 350 metros, pendurada no navio negreiro do 9º Batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Dois policiais militares em incursão, não se sabe de qual dos dois fuzis saiu o único disparo que transfixou o seu peito, mas ela morreu, em tempo inferior a 10 minutos, e 38 anos de sonhos foram embora.

38 primaveras interrompidas por um disparo de fuzil perpetrado pelo Estado. No próximo dia 16 de março o homicídio de Cláudia Silva Ferreira completará 8 anos. 8 anos de angústias, 8 anos de um silêncio ensurdecedor das autoridades. 8 anos em que as canetas sujas de sangue, do seu sangue negro, continuam fazendo vítimas... Faremos justiça, porque “a carne mais barata do mercado não tá mais de graça”.12  

Dedico este texto às potências ancestrais de Elza Soares e Cláudia Silva Ferreira.

Não iremos sucumbir.

_____

* Trecho do poema-protesto, generosamente escrito por Deise Fatuma e que compõe a Introdução da Dissertação de Mestrado de minha autoria. Disponível aqui.

1 Música: Dentro de cada um. Álbum Deus é mulher, 2018, Faixa 10.

2  Em 1999, Elza Soares foi eleita a Voz do Milênio pela BBC Londres.

3 Música: Deus há de ser. Álbum Deus é mulher, 2018, faixa 11.

4 Em Iorubá, significa mundo espiritual.

5 Música: Deus há de ser. Álbum Deus é mulher, 2018, faixa 11.

6 Programa Roda Viva. Disponível aqui.

7 Disponível aqui.

8 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. São Paulo: n-1, edições, 2018, p. 5.

9 Álbum: A Mulher do fim do mundo. Música: A mulher do fim do mundo. Faixa 02.

10 Álbum Do Coccix até o pescoço. Música A Carne. Faixa: 6.

11 Álbum Do Coccix até o pescoço. Música A Carne. Faixa: 6 Marcelo Yuka e Seu Jorge.

12 Álbum Planeta fome. Música: Não tá mais de graça. Faixa 8.

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