Como decorrência da relevante participação dos movimentos negros na Assembleia Constituinte de 1987/1988, a vigente CF/88 consagra o princípio do repúdio ao racismo (art. 4º, inciso VIII) – que deve reger as relações internacionais do Estado brasileiro –, bem como estabelece um mandamento constitucional de criminalização do racismo. Com efeito, nos termos do art. 5º, inciso XLII, CF/88, a prática de racismo configura crime imprescritível e inafiançável, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei.
Desse modo, o legislador constituinte se antecipou ao legislador ordinário para definir, ele próprio, a prática de racismo como crime, estabelecendo a necessidade de tutela penal do direito à não discriminação racial. Note-se que a CF/88 confere status de imprescritibilidade e inafiançabilidade apenas ao crime de racismo e “à ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (art. 5º, inciso XLIV), o que evidencia o grau censurabilidade constitucional atribuída a práticas racistas.
Em 1989, a criminalização constitucional do racismo foi regulamentada pela lei 7.716, conhecida como Lei Caó, em homenagem ao deputado Carlos Alberto Oliveira, autor do respectivo projeto legislativo. Com sua atual redação alterada por cinco leis posteriores1 desde a sua entrada em vigor, a lei tipifica condutas criminosas resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Apesar da evolução do ordenamento jurídico brasileiro no que tange à proteção das vítimas de racismo, a mera criminalização não foi capaz de prevenir práticas racistas que sequer têm sido objeto de eficiente persecução criminal. O que se nota é que, mesmo 32 anos após o início da vigência da Lei Caó, houve o recrudescimento do genocídio da juventude negra, do feminicídio negro, da seletividade racial do sistema penal e, consequentemente, do encarceramento em massa de pessoas negras. Esses fenômenos necropolíticos demonstram que – apesar da relevância do reconhecimento da necessidade de tutela penal contra práticas racistas –, a esfera penal não é a mais adequada para a promoção dos direitos da população negra, mesmo porque se restringe a atingir condutas intersubjetivas, pouco contribuindo para a desestabilização das estruturas racistas.
Além disso, na prática, a tônica tem sido a impunidade nos casos de racismo, com a não aplicação da legislação penal antirracista por parte do sistema de justiça. Não foi à toa que este foi considerado institucionalmente racista pela comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no célebre caso Simone André Diniz (12.0012), primeiro contencioso internacional contra o Estado brasileiro por violação de direitos humanos na seara da discriminação racial. Em 21 de outubro de 2006, a comissão decidiu o mérito do caso, destacando a inoperância do sistema de justiça brasileiro na punição dos crimes de cunho racial.3 No relatório, a CIDH admite a evolução da ordem jurídica brasileira no que se refere à gradativa criminalização das práticas de preconceito e discriminação racial, pontuando, contudo, a resistência dos tribunais na aplicação da legislação pertinente, ao descaracterizarem as condutas típicas a partir do argumento de que se tratava de “mal entendidos”. Para a comissão, apesar do avanço imposto pela CF/88, e pelas leis 7.716/89, e 9.459/97, a impunidade ainda é uma tônica na repressão dos crimes raciais no Brasil. A condescendência da justiça brasileira – que resulta na ínfima condenação de pessoas brancas que cometem racismo4 – poderia, segundo a CIDH, levar à falsa impressão de que, no Brasil, essas práticas não ocorrem.
Nessa senda, a comissão identificou as causas para a ineficácia na aplicação da lei 7.716/89, dentre as quais a exigência, por parte do Poder Judiciário, de prova do ódio racial ou intenção discriminatória. De fato, o sistema de justiça, de um modo geral, tem exigido a inequívoca demonstração da intenção racialmente discriminatória como elemento indispensável para a configuração dos crimes de racismo, o que submete a solução do caso concreto à declaração do/a agressor/a que, geralmente, não afirma perante as autoridades públicas a motivação racista de sua conduta.
A comissão apontou expressamente o racismo institucional como fator determinante da inaplicabilidade da legislação antirracismo no Brasil, refletindo-se tanto na fase investigativa, quanto na fase judicial. Para a CIDH, essa prática impede o reconhecimento do direito do cidadão negro de não ser discriminado, bem como o gozo e exercício do direito de acesso à justiça para ver reparada a violação.
Nesse sentido, a resistência do Poder Judiciário em reconhecer o dolo nas práticas racistas e o consequente alto índice de absolvições têm gerado ineficiência não apenas da tutela penal, mas também da tutela cível, inviabilizando ações de indenização por dano moral. Ademais, também há prejuízos no que tange à responsabilização das instituições públicas e privadas diante das tão comuns absolvições na seara criminal.
Nesse ponto, convém pautar brevemente a possibilidade ou não de aplicação de acordo de não persecução penal aos crimes de racismo. A questão que se coloca é sobre a natureza do acordo de não persecução penal e se sua aplicação significaria um afastamento da tutela penal ou uma maior eficiência e celeridade desta.
Trata-se de um instituto de justiça penal consensual introduzido pela lei 13.964/19, que inclui o art. 28-A ao CPP. Em primeiro lugar, verifica-se que, a priori, os critérios subjetivos e objetivos elencados pelo legislador para o seu oferecimento tornam o ANPP, em tese, aplicável aos crimes de racismo, não havendo proibição legal explícita, como ocorre nos casos de violência doméstica e familiar.
Nesse contexto, formou-se um dissenso entre as/os juristas acerca da aplicabilidade do ANPP aos crimes de racismo, sendo que alguns Ministérios Públicos expediram atos internos orientando seus membros acerca do tema. Os Ministérios Públicos de São Paulo e Paraná, por exemplo, expediram atos recomendando aos seus integrantes o não oferecimento de ANPP nos casos de racismo, sob o argumento, em síntese, de sua incompatibilidade com a tutela penal constitucionalmente estabelecida, por insuficiência protetiva. O Ministério Público do Maranhão, por sua vez, considerando que não há proibição legal, recomendou aos seus membros a análise caso a caso e a aplicação do instituto, desde que observados os requisitos presentes na lei, sob pena de desrespeito à competência legiferante da União no que tange a normas de conteúdo penal.
A apontada divergência em relação a tão importante – porém negligenciada – atuação do sistema de justiça no combate ao racismo revela a necessidade de abordagem legislativa sobre o tema, proposta que foi inclusive apresentada pela Comissão de Juristas Negros e Negras da Câmara dos Deputados, instituída para propor medidas voltadas para o aperfeiçoamento da legislação brasileira de enfrentamento ao racismo estrutural e institucional.
De um modo geral, os institutos de justiça consensual, como o ANPP, aparentam ser um movimento de despenalização. Entretanto, têm sofrido críticas das teorias garantistas por possibilitarem uma espécie de antecipação da pena – ainda que diversa da privativa de liberdade –, muitas vezes restringindo certas garantias processuais. Nessa seara, o ANPP, embora considerado por parte da doutrina como um instituto de despenalização, não tem o condão de descriminalizar a conduta. Na prática, o que ocorre é uma resposta penal mais célere e, muitas vezes, mais eficiente e ampla do que aquela que adviria ao fim de um longo processo penal.
Embora haja quem defenda que um longo processo penal, por si só, já representa uma punição simbólica para o réu, é preciso recordar que também a vítima enfrenta essa mesma morosidade, na tentativa de ter acesso efetivo à justiça, terminando, na maior parte dos casos, condenada à injusta absolvição do seu agressor, sem qualquer reparação pelos danos sofridos. Recorde-se, nesse ponto, a importante pesquisa realizada pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), entre 1º de janeiro de 2005 e 31 de dezembro de 2006, que constatou que vítimas de crimes de racismo perdem 57,7% dos casos, nos julgamentos em segunda instância.5
Para além da preponderante impunidade, nos poucos casos de condenação pela prática de crimes de racismo, as penas privativas de liberdade são substituídas por penas restritivas de direito, sem nenhuma atenção à reparação à vítima. Foi o que se constatou em pesquisa realizada na Promotoria de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do MP/BA, primeira promotoria de justiça desta natureza do país. A pesquisa, intitulada “Crimes de Racismo na Comarca de Salvador"6, detectou que, das 84 denúncias oferecidas por crimes de racismo (envolvendo os crimes previstos na lei 7.716/89 e a denominada injúria racial, tipificada no art. 140, § 3º, do CP), entre agosto de 2016 e julho de 2021, apenas 5 geraram condenações, todas elas com substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e sem a devida reparação à vítima.
Voltando à questão da aplicação do ANPP, fica evidente, nesse contexto, que não há qualquer prejuízo, quer à tutela penal do direito protegido, quer à vítima, obtendo-se inclusive resultados semelhantes e até mesmo mais eficientes e céleres, especialmente se houver disciplina legal mais atenta sobre o assunto. Explica-se: o ANPP se dirige a crimes sem violência, cometido por réus primários, de bons antecedentes, que não gozaram do benefício anteriormente. Em um crime de racismo, fixando-se, por exemplo, a pena em três anos, ou seja, acima do mínimo abstratamente cominado, inevitavelmente caberia, nos termos legais, a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, que é exatamente o que se alcança com a aplicação das medidas previstas no ANPP que, no entanto, podem ir além e preconizam explicitamente a reparação à vítima. Dito de outro modo, não há limitação da tutela penal por parte do Estado, já que, ao final, se denunciado e condenado, o investigado estaria sujeito às mesmas medidas que podem ser aplicadas, a priori, por meio de ANPP.
Além disso, na hipótese da substituição prevista no art. 44 do CP – o que, como já dito, é de práxis nos casos de racismo –, o descumprimento da prestação de serviço, ou de qualquer outra pena alternativa implicará, invariavelmente, no cumprimento da pena privativa de liberdade em regime aberto. Já no caso de assinatura e homologação de um acordo de não persecução penal, o descumprimento importará na continuação do processo penal, com o oferecimento de denúncia.
Em síntese, pode-se dizer que, no Brasil, o déficit de resposta penal à prática de racismo não decorre da “pouca pena” e sim de aspectos – em especial, do próprio racismo institucional – que florescem no curso do processo e que, ao fim e ao cabo, inviabilizam a condenação.
Com o ANPP, uma vez preenchidos os requisitos legais, o MP fica, a priori, condicionado à oferta de acordo. Na atmosfera inicial da persecução, o investigado, não raro, quer se livrar dos riscos do processo, tendendo, desse modo, a aceitar o acordo. O ganho para a luta antirracista é que se evita a produção processual de prova, do exame sobre o dolo e todas as etapas seguintes que são espaços e momentos férteis para que se manifestem todas as formas de racismo que acabam por resultar em absolvição e, portanto, impunidade. Em outras palavras, o ANPP encurta o tempo de persecução criminal que, no processo penal, notadamente nos casos de racismo, milita a favor da absolvição, de modo que um processo abreviado pode favorecer a resposta penal.
Assim, em contraposição ao entendimento de que a aplicação do ANPP é inconstitucional por resultar em proteção insuficiente, vê-se que, na prática, a opção pelo ANPP é opção por eficiência e celeridade na resposta penal aos crimes de racismo. A sua recusa representa a defesa de um simbolismo punitivista estéril.
Dessa maneira, embora simbolicamente seja apresentado como um “benefício” ao investigado, aos que entendem por uma necessidade de punição criminal para práticas racistas, o ANPP atende à dita eficiência punitiva, resultando na aplicação da pena de modo muito mais célere e eficiente do que aquela que adviria possivelmente na (rara) hipótese de condenação, tudo isso sem vislumbrar a prisão como solução, política encarceradora que, sabemos, atinge seletivamente corpos negros. Por isso, deve-se refletir sobre a aplicação do ANPP como instrumento de concessão de celeridade e eficiência na tutela penal da não discriminação racial, que, como visto, tem sido alvo de impunidade em meio ao sistema penal brasileiro. Importar afirmar, ainda, que a simples e ilusória solução pela via da majoração da pena não garante a eficiência da dita tutela penal, uma vez que as mesmas vicissitudes que atualmente resultam em impunidade continuarão presentes.
Desse modo, levando em consideração que o oferecimento de ANPP não é direito subjetivo do investigado, cabendo, inicialmente, ao MP a apreciação no tocante à necessidade e suficiência para reprovação e prevenção do crime –, entende-se que a aplicabilidade do acordo aos crimes de racismo deve ser analisada caso a caso, com observância dos critérios legais pertinentes.
Nada obstante, para evitar a banalização do acordo de não persecução penal – como tem ocorrido com o instituto da transação penal que não raro resulta em pagamento de cestas básicas –, sobretudo nos casos de racismo, é preciso que as medidas propostas pelo Ministério Público levem em consideração o grau de censura constitucional atribuída ao racismo, prevendo condições, ao menos em tese, efetivamente adequadas e suficientes para a reprovação e prevenção desse tipo de delito.
É nesse sentido que se propõe abaixo os seguintes dispositivos7 a serem considerados quando do oferecimento de acordo de não persecução penal nos casos de racismo:
“§ 2º-A - Para aplicação do acordo de não persecução penal aos crimes de racismo, o Ministério Público, além das condições subjetivas previstas no caput deste art. , para aferir a necessidade e suficiência do acordo, levará em consideração, dentre outros elementos: I - a repercussão pública do crime; II - o meio utilizado para sua prática; III - os efeitos morais e materiais do crime para a vítima. §2º-B - Nos crimes de racismo, a proposta de acordo de não persecução penal, além das condições dos incisos de I a V, do caput, deverá conter cláusula pertinente: I - à reparação mínima à vítima pelos danos morais e materiais decorrentes do crime, cujo valor deverá ser abatido em eventual condenação cível; II - à fixação, em sendo o caso, de valor mínimo de indenização por dano moral coletivo, destinando-se o valor correspondente para fundos ou ações específicos destinados ao enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial, sem prejuízo de eventual ação civil pública, cujo valor da condenação deverá ser abatido do montante pago em decorrência do acordo; III - à prestação de serviço à comunidade, que consistirá em atribuições de tarefas gratuitas a serem realizadas em organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial; IV - à participação do investigado em cursos ou grupos reflexivos de letramento racial, a serem realizados por organizações ou instituições públicas ou privadas cuja principal atuação esteja voltada para o enfrentamento ao racismo e/ou à promoção da igualdade racial."
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1 As leis 8.081, de 1990; 8.882, de 1994; 9.459, de 1997; 12.288, de 2010; e lei 12.735, de 2012.
2 CIDH – OEA, Relatório 66/06, Caso 12.001, mérito, Simone André Diniz, Brasil, 21 de outubro de 2006. Disponível em «http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm». Acesso em 2 de dezembro de 2021.
3 De acordo com trecho da decisão de mérito emitida no Relatório 66, de 2006 – Caso 12.001, de 21 de outubro de 2006, “de 300 Boletins de Ocorrência analisados, de 1951 a 1997, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, apenas 150 foram considerados como crime pelos delegados de polícia chegando ao estágio de inquérito policial. Desses, somente 40 foram encaminhados pelo Ministério Público para uma ação penal contra o discriminador, dos quais apenas nove – cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul – chegaram a julgamento”. Disponível em «http://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm». Acesso em 2 de dezembro de 2021.
4 “Mesmo no caso de São Paulo, onde existia uma delegacia para crimes raciais, os crimes não eram de todo investigados ou as denúncias não eram processadas. Na prática, a falta de uma investigação diligente, imparcial e efetiva, a discricionariedade do promotor para fazer a denúncia e a tipificação do crime, que exige que o autor, após a prática do ato discriminatório, declare expressamente que sua conduta foi motivada por razões de discriminação racial são fatores que contribuem para a denegação de justiça para a investigação dos crimes raciais e a impunidade. Para ilustrar com alguns dados o padrão de desigualdade no acesso à justiça para as vítimas de crimes de cunho racial, de 300 Boletins de Ocorrência analisados, de 1951 a 1997, nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, apenas 150 foram considerados como crime pelos delegados de polícia chegando ao estágio de inquérito policial. Desses, somente 40 foram encaminhados pelo Ministério Público para uma ação penal contra o discriminador, dos quais apenas nove – cinco em São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul – chegaram a julgamento.”
5 MENEZES, Maiá. Vítimas de racismo perdem 57,7% das ações. O Globo, 20 nov. 2008. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/408706/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 5 out. 2021.
6 Pesquisa realizada no âmbito do Grupo de Pesquisa Eixo Racismo, instituído pelo Centro de Aperfeiçoamento de Estudos Funcionais (CEAF), do Ministério Público do Estado da Bahia.
7 Aqui, a contribuição segue no formato de proposta de inclusão de dispositivo legal no art. 28-A do CPP. No entanto, o mesmo conteúdo pode servir de parâmetro para a expedição de recomendações e/ou atos normativos do próprio Ministério Público.