Olhares Interseccionais

O novo Código de Processo Penal e um sistema de invalidades bem velho

O novo Código de Processo Penal e um sistema de invalidades bem velho.

25/10/2021

Extra! Extra!

Vem aí um Novo Código de Processo Penal!

A notícia é repetida amiúde, de tempos e tempos, mobilizando o mundo jurídico-penal de forma (in)tensa. A possibilidade de mudança de um Código é sempre um portal que se abre para reflexões, revoluções e - disso há quem se esqueça - toda sorte de conservadorismos. Aliás, vale lembrar que mudança nem sempre é sinônimo de aperfeiçoamento e, se o processo penal é sobretudo um ritual usado para encarcerar pessoas, subjetividades e comunidades negras, “aperfeiçoar” pode ter sentido oposto ao que desejamos.

A Coluna Olhares Interseccionais tem se dedicado1, nas suas mais recentes edições, ao Projeto de Lei nº 8.045/2010, em tramitação perante a Câmara dos Deputados, buscando contribuir com os debates que, não se sabe quando, culminarão com um novo diploma processual penal.

Como sabemos, o regramento processual penal brasileiro é uma velha colcha tecida com fios ítalo-fascistas por mãos autoritário-racistas em 1941; para os discursos violentos, que defendem a manutenção de uma abstrata “ordem pública” e o "fim da impunidade", é uma coberta quentinha e aconchegante. É bem verdade que esse cobertor vez ou outra disfarça suas cores mais vivas, e o problema reside bem aí: os muitos fios que a compõem seguem acomodando velhas práticas, adotadas com fervor também por novas mentes. Essa "mentalidadezinha" de sujeitos que não se enxergam, as tais pessoas universais, paradigma da existência que se alimenta da constante subjugação do outro, o diferente, esses aos quais se quer relegar à condição de "não-se" através das diversas formas de extermínio.

Retalhos muitos foram cosidos, numa tentativa vã de fazer dessa colcha outra coisa, como se fora possível, com a aposição aleatória de pedaços de pano, retirar a teia inquisitorial que sustenta essa malha. Em 2003, a lei 10.792 passou a assegurar a presença da defesa técnica no interrogatório judicial, algo que gritava da Constituição Federal desde 1988, contudo se preferiu não ouvir. Durante quinze anos, foi como se o princípio da ampla defesa, inscrito de forma explícita na Lei Maior, não englobasse o direito de ter consigo um/a defensor/a, justo nesse momento tão importante do rito criminal. Em 2008, três Leis se dispuseram a modificar o CPP (11.690, 11.698 e 11.719), e lá se foram alterações ao rito comum, ao rito do júri e à disciplina das provas. Destaque para a ordem da inquirição na audiência de instrução e julgamento, que passou a ser primeiro das partes e, apenas de forma complementar, do juízo; para a instituição da possibilidade de encerramento prematuro do feito, com a resposta à acusação; e para o reposicionamento do interrogatório ao final da cadeia de eventos do processo, o que de fato deu vida ao contraditório e à defesa pessoal. Em 2011, foi a vez de “revolucionar” o panorama das medidas cautelares de natureza pessoal e a grande inovação foi um rol de alternativas à prisão provisória, a exemplo da monitoração eletrônica. Em 2015, circunstancialmente fora do Código, porém com todo impacto na dinâmica do processo penal, o CNJ editou a resolução 213. Surgiam as audiências de custódia, inspiradas em antigos diplomas de direitos humanos da década de 60, cuja interpretação estava ali, também adormecida, ofuscada. Com elas, um giro na metodologia de se apreciar a verificação da legalidade das prisões em flagrante e provisórias e a abertura de um espaço de visualização e escuta de eventuais violências contra a pessoa apresentada às autoridades (MP, Juízo e Defesa). Por fim, o "Pacote Anticrime", lei 13.964/2019, cujos reflexos no CPP foram inúmeros, e se iniciam com um dispositivo declaratório da estrutura acusatória do processo penal brasileiro, inscrevendo uma certeza antiga de grande parte da doutrina, aquela que tem especial cuidado com a leitura do art. 129, I, da CF/88.

Essa miríade de modificações não tem sido suficiente para dar conta da "espinha dorsal" inquisitória do Código de Processo Penal. Sua vocação é nitidamente para uma persecução penal preocupada mais com o resultado do que com a forma, do que decorre a compreensão dos direitos e garantias da pessoa acusada como um obstáculo à conclusão do proceder. É nesse contexto que entendemos fundamental perguntar: qual reforma processual penal queremos? Muitos são os desenhos possíveis do que deve ser uma boa arquitetura de um sistema de regras pensado para desempenhar a função de contenção do poder de punir. Não pretendemos, não hoje, esboçá-los; queremos apor nossa mirada à outra ponta tão ou mais relevante: o sistema de invalidades de um futuro código processual penal.

O código vigente nunca escondeu a que veio. Sua Exposição de Motivos, num português arcaico, deixa extremamente nítido que o respeito às normas processuais deve ser entendido como "excessivo rigorismo formal"; lendo-se às avessas, a violação da forma prescrita para os atos processuais penais não há de gerar necessariamente nulidade. É bom conferir para crer:

AS NULIDADES. XVII – Como já foi dito de início, o projeto é infenso ao excessivo rigorismo formal, que dá ensejo, atualmente, à infindável série das nulidades processuais. [...] O projeto não deixa respiradouro para o frívolo curialismo, que se compraz em espiolhar nulidades. É consagrado o princípio geral de que nenhuma nulidade ocorre se não há prejuízo para a acusação ou a defesa.

Não nos parece coincidência que o capítulo das Nulidades do CPP nunca tenha sido reformado. A quem interessa estabelecer um sistema de invalidade que inspire efetivo respeito ao regramento estabelecido? O princípio-mantra do "prejuízo" tem versão em francês: "pas de nulité sans grief". Se há muitos inspira elegância, a nós nos parece uma inaceitável permissivo a toda sorte de violações. Apenas para ilustrar, e aproveitando o mote do texto magistral do prof. Saulo Mattos na última edição desta coluna2, o reconhecimento de pessoas foi considerado, desde 1941 (!), um procedimento de ditames desrespeitáveis, lendo-se o conteúdo do art. 226 do CPP como "mera formalidade". Aspeamos porque a expressão não é dada por qualquer pessoa, mas pela Corte a quem cabe o controle de legalidade dos atos do procedimento criminal. A noção de que "não há nulidade sem prejuízo", codependente do "a parte deve comprovar o prejuízo", é a deixa bastante para fazer letra morta quase todo o desenho processual, minando prerrogativas da defesa e direitos da parte débil do processo penal, aquela a quem se imputa o fato delituoso. Se é verdade que jurisprudência ganhou novos contornos com a paradigmática decisão sobre o reconhecimento de pessoas no HC 598886 do STJ3, nada garante que não possamos retornar ao tenebroso cenário, afinal a legislação convida mesmo a que sejam toleradas as nulidades quando conveniente for.

Essa profunda angústia do legislador e da jurisprudência com o "desperdício" da marcha processual realizada tem fonte sabida. É o processo civil, ambiente em que, ensina o professor Fredie Didier Jr., "O órgão julgador deve sentir um profundo mal-estar quando tiver de invalidar algum ato processual"4. Nada mais natural: lá, estando-se, ao menos em regra, diante de interesses patrimoniais e disponíveis, é urgente se aproveitar tanto quanto possível todo esforço para se chegar a uma solução ao litígio. No processo penal, a realidade é outra, bem outra. O caminho que se trilha nestas bandas tem como finalidade, também em regra, selar o destino de vida de uma pessoa, possivelmente submetendo-a à mais grave das restrições, a prisão. Essa a razão central pela qual se deve respeito intransigente à ritualística processual penal, nunca incumbindo à defesa o papel (tantas vezes insuperável) de reunir prova do prejuízo sofrido, sobretudo porque nesse mister reside a abertura ao arbítrio judicial pela via da convalidação de atos gravemente defeituosos.

O pretenso Novo Código de Processo Penal aloca as nulidades não na metade final do código, mas no seu Capítulo IV (Das Nulidades) do Título VII (Dos atos Processuais). Como diz o poeta, "Talvez seja bom, partir do final"5, afinal inscrever no início do Código as regras atinentes às nulidades adverte à/ao intérprete as consequências da inobservância do procedimento que se traça em seguida. Apesar disso, o projeto do novo CPP, no quanto até aqui proposto – sim, temos esperança de mudanças – nada inaugura de importante. A mudança é meramente topográfica, pois o regramento sugerido para o sistema das invalidades é rigorosamente o mesmo, em linhas gerais. O art. 186, que abre o capítulo, não nos ilude:

Art. 186. O descumprimento de disposição constitucional ou legal que tenha por objeto matéria pertinente ao processo ou à investigação criminal determinará a invalidade dos respectivos atos, nos limites e na extensão previstas neste Código. 

A redação capciosa foi vista em outras passagens do projeto de CPP: uma enunciação categórica e animadora seguida de uma vírgula que a reduz, limita ou mesmo gera sua negação [6]. No caso, está bem registrado quais contextos dão causa à invalidade de um ato, todavia o texto se apressa a dizer que essa sanção (a invalidação) está restrita aos limites e só se dará na extensão do Código. O que vem a seguir é a perpetuação dos erros de hoje.  Uma tradição tão civilista que a citação do grande professor processualista baiano parece ter inspirado o art. 187, I, do qual se lê: "I - é dever do juiz buscar o máximo de aproveitamento dos atos processuais" (será mesmo? A que custo?). A pá de cal vem com o inciso III, segundo o qual "o prejuízo não se presume, devendo a parte indicar, precisa e especificadamente, o impacto que o defeito do ato processual gerou no exercício do contraditório ou da ampla defesa". A incansável luta dos/as processualistas penais (aqueles/as dedicados/as a um processo penal progressista, digamos bem) para que o descumprimento das formas estabelecidas em lei seja presumido como razão para a invalidação dos atos não ecoa neste possível Novo Código de Processo Penal.

Há muito em jogo num país que não superou suas estruturas racistas e patriarcais, numa democracia marcada por instituições que convivem tranquilamente com o genocídio da população negra e uma nação que ainda tolera discursos negacionistas que embalam a morte de centenas de milhares de pessoas. Pensar um Código de Processo Penal nesse contexto é algo extremamente complexo, mas, se o momento for este, que pensemos naquele rosário de regras que deem conta do melhor diploma para assegurar as iras do poder de punir. Não esqueçamos, todavia, que de nada bastarão as melhores intenções e até mesmo as melhores disposições normativas se o próprio Código for complacente com o seu descumprimento, pavimentando uma larga avenida pela qual transitarão decisões que legitimam um não-processo, esse espaço do florescer arbitrário em que tudo é permitido, apesar da lei.

__________

1 O primeiro artigo da série pode ser visto aqui.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 22. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 509.

5 Emicida, em "É tudo pra ontem", part. de Gilberto Gil. Assista aqui.

6 A versão primeira do art. 4º do projeto era exatamente esta: "Art. 4º O processo penal terá estrutura acusatória, nos limites definidos neste Código".

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.