"Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!"
(O navio negreiro, poeta Castro Alves).
"O chicote sempre se pretendeu erudito
Ordenou e ordena em idiomas vários
O seu "tenho dito!"
Nesse tom
a vida míngua
vira mar de mágoa
incha a nossa língua
(...)"
(Interpela-som, poeta Cuti)
O vento que chega é dolorosamente salgado, histórico, e deseja ser tempestade, ainda que a saudade da brisa seja um amor antigo. Vem do fundo, do fundo do mar, esse sonho de ser ventania, correr pela diáspora dos corações e gritar: cadê a liberdade? Estátuas de sal escondem sangue, grilhões e se glorificam como instituições do bem-estar social. É desse sal retirado de negros/as lançados ao mar da História, afogados de banzo, mutilados/as em suas genitálias, sodomizados em porões, que se fez o capital, que se construíram as grandes capitais. E se o sal que esse vento traz é especiaria indispensável, que se diga que, para o lado de cá — onde sobreviver pode ser um delírio negro —, fez subir a pressão arterial, entupir as coronárias da emoção e decepar cabeças com aneurismas.
Os que conseguiram atravessar o Atlântico souberam, de alguma forma, contar aos seus que é possível resistir, e que são muitas as formas de lutar contra Tânatos, que finge vestir roupa branca e costuma encomendar suicídios para que seu estômago tenha paz. A transmissão desse saber — o resistir — se inscreveu no corpo, no visual, na oralidade primeira do choro, na magia de uma ancestralidade que confia nos segredos divinatórios do Ifá. Dois negros, que sejam negros, quando se olham já sabem que ali, nesse encontro, há um resgate histórico. O coração diz: “Quilombo!”. Duas negras, que sejam negras, quando se encontram, já sabem que entre a doçura das cachoeiras, o salitre do mar e a tempestade que chega, há muita dor que precede o amor. O coração diz: "Quilombo! Dororidade1!"
Em comunidade, entre o seus, o corpo negro é um corpo que fala a todo instante, que se coloca à disposição dos "sons do pensamento2. Na outra margem social, no entanto, onde ser gente é ser branco, a negra-vida, por insistir em existir, provoca desconfortos sociais, já que mesmo em silêncio, em breves e discretos passos, continua a ser o corpo que prova, para o sistema-mundo, o delito histórico que certifica o nascimento do Brasil: a escravidão.
A relação de nossa sociedade com o negro é paradoxal, instaura uma espécie de "descartabilidade essencial", típica de um arquétipo antinegro3 que moldura a formação social brasileira. Sem essa materialidade orgânica negra, o sistema de justiça, em especial o criminal, não teria em quem despejar seus erros sistemáticos e se manter firme na sua insípida tecnicidade jurídica. O corpo negro é descartável, portanto, no sentido de que faça-se o que quiser com esse corpo. Essencial, porém, porque alguém tem que ser lixo, tem que ser excremento.
Um parêntese: ainda assim, é preciso confiar em Lelia Gonzalez quando, na ardência de um feminismo negro transformador, disse que esse lixo humano "vai falar, e falará numa boa", porque a negritude está cansada de ser infantilizada.4
Sabendo que nossos ventos ecoam gritos dos navios negreiros, – tanto as ordens dos chicoteadores quanto os lamentos dos/as negros/as escravizados/as —, queremos lembrar que o processo penal brasileiro é um atualizável empreendimento colonial, de reconfigurações não só da Casagrande e da Senzala, mas das lavouras, da domesticação e comercialização de gente preta, do tráfico negreiro.
Nosso processo penal é um navio negreiro. Transporta, no cotidiano, um amontado de corpos negros para o cárcere sob o comando de uns poucos que detêm o chicote. E o reconhecimento de pessoas tem sido uma das principais ferramentas probatórias para que esse encarceramento em massa continue produtivo. A propósito, o historiador Hebert S Klein narra que, na história da escravização de africanos, o tráfico negreiro pode ser considerado um dos capítulos mais horrendos e repugnantes da vida escrava.5
Há muitos e recentes casos de reconhecimentos fotográficos falhos que provocaram prisões e condenações injustas. Bárbara Querino. Tiago Vianna Gomes. Luiz Carlos da Costa Justino. Daniel Felix. Ângelo Gustavo Pereira Nobre. Jeferson Pereira da Silva. Todos negros. Cada nome desse é uma vida erroneamente interceptada pelo processo penal, com base na nefasta prática policial do álbum de suspeitos, de fotografias retiradas de Facebook, transmitidas via WhatsApp e por foto 3X4. Foram prisões e condenações decretadas com base em um reconhecimento fotográfico sem qualquer fiabilidade probatória, não só pelo descumprimento do minimalista art. 226 do CPP, sobretudo porque "a foto em si" é de duvidosa autenticidade e de questionável licitude quanto ao meio que foi obtida pelos agentes estatais.
Na atmosfera inquisitorial e de autoritarismo racial que envolve a fabricação do inquérito policial, o álbum de suspeitos se destaca como o principal instrumento de captura de corpos negros inocentes. Muitos dos que compõem esse álbum são pessoas negras que não tiverem qualquer contato com aquilo que se convencionou chamar de "mundo do crime" e com a própria justiça criminal. Estão no álbum de suspeitos por uma única razão. É a pele preta, aquela que mobiliza estereótipos raciais engessados no racismo institucional da polícia investigativa, mas também do Ministério Público e do Poder Judiciário que nada fazem para descredenciar essa prática segregacionista que é o álbum de suspeitos.
Para além de um jogo múltiplo de estereótipos raciais, — o negro como naturalmente propenso ao crime e o branco como ser ocasionalmente desviante, dotado de uma bondade natural —, o álbum de suspeitos reverbera, por longo tempo, nas vidas de pessoas negras que figuram nessa coletânea de fotos administrada pela polícia. É que, mesmo quando inocentado/a, a foto ainda continua no álbum. E, com certa frequência, novos e errados reconhecimentos são feitos com base nessa foto. Ou seja, a pessoa fica refém, por tempo indeterminado, de uma alucinante espiral de erros do sistema de justiça.
Fotografe-se, então, o seguinte pensamento. Uma vez dentro do álbum de suspeitos, para sempre se estará dentro do álbum de suspeitos. Tem sido assim. Este é um dos aterrorizantes cenários de nossa prática processual penal em relação ao reconhecimento de pessoas. Considerado o racismo estrutural que funda a sociedade brasileira, a hipótese que nos visita é que a autoridade policial que se vale do álbum de suspeitos, que é um procedimento totalmente à margem da lei, pratica crime de abuso de autoridade (art. 25 da lei 13.869/2019), como também o crime de racismo (art. 20 da lei 7716/1989), já que, por conta do álbum de suspeitos, pessoas negras passarão, conforme explicado acima, a ser segregadas da sociedade com sucessivas abordagens policiais, prisões e condenações injustas, tendo-se por fundamento uma prova de reconhecimento ilicitamente produzida.
Com alguma esperança sobre uma reforma processual penal que tente abraçar tanto os aportes epistemológicos da atual dogmática probatória, da Psicologia do Testemunho6, quanto a seriedade dos estudos étnico-raciais desenvolvidos há anos no Brasil, a primeira premissa da qual se deve partir é a impossibilidade do uso de álbum de suspeitos no reconhecimento de pessoas. Quando se diz isso, entenda-se também que não há condições de se pensar em um álbum de suspeitos "remodelado", que apareça na legislação com um nome mais sofisticado e permita uma interpretação elástica, a fim de que se prossiga na prática com um banco de fotografias antigas, exibidas aleatoriamente à vítima ou testemunha. Essa ideia de remodelar algo que é, na origem, bastante negativo e segregador pode ser mais um truque legislativo racialmente inquisitorial para aprisionar corpos negros.7
A perversidade probatória do reconhecimento de pessoas não fica só por conta do uso do álbum de suspeitos. Há uma exitosa propaganda inquisitória em torno do reconhecimento de pessoas na forma como ainda é praticado no Brasil. Nessa publicidade inquisitorial, maquiada pelo discurso de necessidade de Defesa Social, diz-se que, a partir do reconhecimento, é possível alcançar o absoluto da verdade: ora, se a vítima, que estava no local do crime, viu quem foi seu algoz, qual prova poderá refutar a verdade dessa narrativa? Em síntese, a carta na manga que fortalece o indistinto uso do reconhecimento de pessoas no processo penal é a ideia de certeza visual, de evidência total, de dispensabilidade de produção de outras provas.
O reconhecimento de pessoas é, usando-se das reflexões do professor Rui Cunha Martins, um "simulacro de autorreferencialidade", com "pretensão de uma justificação centrada em si mesmo" e, por isso, é uma prova que alucina a compreensão racional do contexto probatório. Com isso, compreende-se o que referido catedrático quer dizer ao afirmar que "a prova é sequestrável", o que pode ser verificado a partir do "ambiente de captação e instalação da prova, que é onde verdadeiramente se joga a sua maior ou menor capacidade de filtragem8."
Nessas condições, é como se o reconhecimento de pessoas produzisse um regime próprio e distorcido do dizer e produzir a verdade no processo penal, que magnetiza e corrompe outras perspectivas discutidas no processo, a exemplo da alegação de álibi pela defesa, vista com muita desconfiança pelos demais sujeitos processuais.
Ontem, a confissão como rainha das provas, se bem que continua a ser bastante usada. Hoje, o reconhecimento de pessoas.
A atual prática de reconhecimento de pessoas, fechada às concepções da epistemologia probatória e da Psicologia do Testemunho, não considera as diversas variáveis de estimação e do sistema de justiça que influenciam no reconhecimento a ser feito pela vítima ou testemunha. Para se ter um exemplo corriqueiro, a própria arma de fogo (weapon effect) usada no roubo é um evento que interfere na acuidade do processo de memorização da vítima em relação às circunstâncias do crime. A iluminação do local também. A diferenciação racial entre vítima e suposto autor do delito é outra variável que interfere na memória. Pessoas de um mesmo grupo racial tendem a ter dificuldades em reconhecer os rostos de pessoas integrantes de outro grupo racial (cross racial effect). Há várias explicações do campo da Psicologia para esse fenômeno. Mas no Brasil ocorre uma verdadeira interdição discursiva quanto ao tema do efeito de outra raça (cross racial effect), porque o metadiscurso que nos envolve é a mentira da democracia racial9. Além dessas ilustrações, é preciso dizer, com a cientificidade de Elizabeth F. Loftus10, que a maleabilidade é uma característica inerente à memória humana, ou, como preferiu poetizar Wally Salomão, "a memória é uma ilha de edição".
Como se vê, não há nada que, cientificamente, autorize a supervalorização de um aleatório reconhecimento de pessoas feito por uma vítima ou testemunha que, na maioria dos casos, emitiu sua narrativa de confirmação da autoria delitiva a partir de fotos antigas do suspeito e sob o influxo de diversas variáveis que não são consideradas no ato de reconhecimento, até porque a atual redação do art. 226 do CPP nada diz sobre essas variáveis.11
Nesse cenário, essa ardilosa prática de reconhecimento de pessoas instaura uma ambiência processual penal subterrânea, que nulifica qualquer perspectiva de proteção de direitos e garantias fundamentais no espaço processual probatório. Mostra-se como uma prova duplamente encarceradora, aprisiona os outros meios de prova como se fosse, na escala da valoração judicial, hierarquicamente superior, concepção esta que não encontra suporte legislativo no Código de Processo Penal. É uma tarifação probatória do cotidiano forense, ao bel-prazer do Poder Judiciário, embora máscaras discursivas tentem mostrar alguma intelecção inferencial no ato decisório. Por fim, o reconhecimento de pessoas tem viabilizado o encarceramento em massa de pessoas negras. Antes mesmo das algemas, réus e rés negras sentem em seus pulsos os grilhões desse utilitarista meio de prova.
Alguém, movido por uma fé nonsense em um certo conceitualismo do processo penal, dirá que tudo isso é extremismo de uma interpretação sociorracial equivocada, porque, como regra, o reconhecimento de pessoas é corroborado por outras provas. Qual corroboração? Essas outras provas, quando olhamos para o caso concreto, são testemunhos de policiais que oferecem repetições automáticas do que foi dito no inquérito policial e sequer presenciaram o fato criminoso. Ou, o que pode ser pior, a prova corroboradora é uma confissão do acusado de duvidosa licitude procedimental.
Além disso, as investigações não costumam proporcionar a oitiva de outras pessoas que, não vinculadas ao círculo de contatos da polícia, presenciaram o fato punível e poderiam permitir com seus depoimentos a construção de hipóteses investigativas alternativas, o que é epistemologicamente saudável para que se garanta — da raiz investigativa do caso penal à sentença definitiva — um democrático procedimento probatório.
Portanto, na nossa desviante prática processual penal, não existe corroboração probatória do reconhecimento de pessoas. É puro embuste processual para condenar pessoas negras. Se ainda não foi dito, chegou a hora de expressar que a justiça criminal é racista, gratuitamente violenta contra os que possuem "a cor da noite", são "filhos/as de todo açoite.12" Muitas denúncias, prisões preventivas e sentenças condenatórias são estabelecidas, unicamente, com base em um reconhecimento de pessoas desprovido de qualquer fiabilidade probatória. E, ainda que fosse dotado da melhor acuidade probatória possível, não seria admissível uma decisão judicial somente com suporte nesse tipo de prova, justamente por conta do natural maleabilidade e falibilidade da memória humana.
Queremos pensar, com inspiração na concepção racionalista de Jordi Ferrer Beltrán13, que prova é contexto probatório racionalmente justificável, sem autorizações para saltos inferenciais, principalmente em realidades processuais penais notabilizadas por um autoritarismo racista.
Diante de tudo isso, sem dúvidas, precisamos desenvolver uma epistemologia probatória garantista que esteja enraizada na sociorracialidade da questão criminal brasileira. Adiante algumas reflexões sobre casos judiciais que se destacaram no cenário nacional.
A decisão de revogação de prisão preventiva proferida pelo juiz André Nicolitt no caso do violoncelista Luiz Carlos da Costa Justino, ao unir aspectos dogmáticos (cadeia de custódia), da Psicologia do Testemunho (interferências de diversas variáveis na produção da memória) e sociológicos, foi fundamental para a abertura de uma nova perspectiva decisória em relação ao reconhecimento de pessoas. Aqui está um significativo trecho dessa decisão: "em resumo, um suspeito sem investigação prévia, que já é apresentado em um álbum no ato do registro da ocorrência, é um suspeito que precede o próprio fato. É uma espécie de suspeito natural." Luiz Justino acabou sendo absolvido. Contudo, a decisão absolutória, proferida por outro magistrado, não tem condições de reparar os destroços psicológicos e existenciais que um errado reconhecimento de pessoas provocou em Luiz Justino e sua família (esposa e filha de 03 anos de idade)
Falhos reconhecimentos de pessoas não só segregam pessoas negras do convívio social, como abalam mais ainda famílias negras que vivem em comunidades periféricas e que, esquecidas pelo Estado, suplicam entre si que ao menos não sejam violentadas pela polícia. Ao sair da prisão, Luiz Justino cortou o cabelo, já não usa mais dreads. O cárcere mexeu com sua identidade racial. Esse racista procedimento de reconhecimento a que foi submetido desestruturou, em alguma medida, o seu poder de autodefinição, a capacidade de se reconhecer como um talentoso, erudito e promissor músico negro para além das muralhas de uma sociedade brancocêntrica.14
A decisão do Min. Rogério Schietti Cruz no HC 598.886 – SC também lufou ares garantistas e epistemológicos para o procedimento de reconhecimento de pessoas. De fato, se tornou, pela representatividade jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, em um novo paradigma interpretativo quanto ao reconhecimento de pessoas, principalmente quando diz que “à vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo”. A nota de destaque dessa decisão também fica pela curiosidade de que o réu envolvido nesse precedente é de pele branca. Apesar de a decisão mencionar, genericamente, a ideia de racismo estrutural no Brasil, o que de certo modo representa algum avanço, fique-se nítido que não existe racismo estrutural contra pessoas brancas. Uma das premissas básicas para uma séria discussão sobre a questão racial é que não há como admitir, diante do nosso passado-presente colonial, que a branquitude é alvo de racismo reverso.
Há, portanto, alguma esperança em relação ao reconhecimento de pessoas no Brasil?
A ideia de um novo Código de Processo Penal é bastante sedutora, principalmente para quem está conectado com a promessa de um Brasil democrático. Já são 80 anos de CPP, cuja marca é o anacronismo. Está repleto de dispositivos originários da década de 1941 e cortado por inseguras reformas pontuais que não conseguiram implementar um devido processo penal. É sempre um andar para frente seguido de dois passos para trás. A cada tópica inovação legislativa garantista, segue-se uma suspensão de eficácia normativa pelo Supremo Tribunal Federal ou novas propostas legislativas que, com a utilização de cláusulas gerais abertas, abrem espaços para posturas inquisitórias no processo penal.
No que se refere ao reconhecimento de pessoas, quando se olha para o PL 156/2009, o substitutivo PL 8045/2010 e tantas outras propostas legislativas que lhes seguiram, percebe-se como a tentativa de adequação legislativa do procedimento de reconhecimento aos achados científicos consolidados nas pesquisas sobre a memória humana têm causado desconfortos políticos, especialmente nos figurantes legislativos conhecidos como "Bancada da Bala". É como se o Direito Processual Penal tivesse que permanecer, eternamente, de costas para os sérios estudos da Neurociência, Psicologia e, principalmente, de uma Sociologia relacionada à Teoria Crítica da Raça.
Questões como efeito de outra raça, alinhamento justo e número de fillers, vedação de sugestionamento policial (feed back), maleabilidade da memória, efeito familiaridade, efeito compromisso e outros vieses, erros honestos, necessidade de gravação audiovisual do procedimento, racismo institucional e estrutural, bem como a condição de (ir)repetibilidade do reconhecimento de pessoas, não são meros caprichos ideológicos de disciplinas alheias ao Direito. Ao contrário, apontam para uma responsável possibilidade de que o procedimento de reconhecimento de pessoas se torne um expediente probatório fiável, impedindo a ocorrência de evitáveis erros do sistema de justiça criminal, que recaem, em quase exclusividade, sobre pessoas negras.
Movimentos sociais, pesquisadoras, juristas, professores, juízes, defensores brasileiros e, em menor medida, o Ministério Público estão conectados com um novo modelo de reconhecimento de pessoas que traduza a necessidade de respeitar direitos e garantias fundamentais de suspeitos, investigados e acusados. A Comissão de Juristas para Combate ao Racismo Estrutural no Sistema Penal tem realizado, no âmbito da Câmara dos Deputados, importantes debates sobre uma nova configuração legislativa do reconhecimento de pessoas, que considere, o que é essencial, a existência de um racismo que se dá na produção e aplicação da lei processual penal.
O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), além da atuação de litigância estratégica em casos de erros judiciários com base em falhos reconhecimentos pessoais, elaborou importante caderno de enunciados sobre esse meio de prova, considerando as principais discussões do campo científico sobre a memória. O Innocence Project Brasil também tem se destacado na atuação de revisões criminais que envolveram erros de reconhecimento de pessoas. Recentemente, o Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) promoveu curso gratuito sobre o reconhecimento de pessoas com a participação de diversos especialistas, convidando a sociedade a compreender um pouco das complexas distorções desse meio de prova
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu, em 31 de agosto de 2021, interessante grupo de trabalho, composto por pesquisadores, professores, juízes, promotores e autoridades policiais vinculados aos campos da Psicologia, Epistemologia, da Questão Racial e outros espaços do saber, algo que, pela diversidade de integrantes, parece promissor quanto ao desenvolvimento de eficientes protocolos que consigam evitar erros judiciários decorrentes de reconhecimentos falhos.
Caminho longo, travessias cansativas, sangue que pinta lábios negroides. Nem sempre é possível dizer que "quem é do mar não enjoa". É tempo de vento forte, redemoinhos, muitos dizeres senhoriais continuam a ressoar nas nossas cabeças. É negro-coisa, é negro, é não-pessoa, a matéria-prima barata que suporta a colonialismo da Justiça Criminal, eficiente na produção de erros judiciários.
Aquele famoso poeta de Portugal, Fernando Pessoa, certa vez escreveu: "ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram; Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar para que fosses nosso, ó mar!". De fato, a memória é dada ao esquecimento, às vezes proveniente de um seletivo ato de esquecer. Lembremos à pátria-mãe colonizadora que muito do mar salgado que nos banha é composto de lágrimas de negros/as tirados à força de África, transportados em navios insalubres, palco de todo tipo de exploração contra o corpo negro. Muito desse sal são lágrimas de negras estupradas nesses navios, do suor de corpos negros jogados ao mar.
Sobrevivemos ao Navio Negreiro, à Casa-Grande e à Lavoura. Estamos em processo de ocupação de lugares sociais que sempre nos foram negados. Aqui está nosso aviso incendiário. Digam aos marujos do Sistema Penal, de inquietos chicotes, que nossos assobios são tempestades afrodiaspóricas que espalham revoluções!
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1 Conceito desenvolvido por Vilma Piedade. Cf. Dororidade. São Paulo: Editora Nós, 2017.
2 Expressão retirada da poética do filósofo e músico Tiganá Santana, referente a uma série de vídeos disponibilizados pela plataforma you tube que contam a história sensorial de seus álbuns musicais.
3 Para uma visão ampla sobre a ideia de antinegritude, cf. VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v. 18, n. 45, 2020.
4GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2020.
5 Cf. KLEIN, Hebert. S.O tráfico de escravos no Atlântico. São Paulo: Funpec Editora, 2004, p. 130.
6 Cf. CECCONELLO, William Weber; STEIN, Lilian Milnitsky. Prevenindo injustiças: como a psicologia do testemunho pode ajudar a compreender e prevenir o falso reconhecimento de suspeitos. Avances en Psicología Latinoamericana, v. 38, n. 1, p. 172-188, 202; FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no processo penal: uma proposta interdisciplinar de valoração. Florianópolis: Emais, 2020; STEIN, Lilian Milnitsky et al. Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça (Série Pensando Direito, N. 59, 2015).
7 Para uma ampla e interessante discussão que relacione o uso de adequadas tecnologias para o reconhecimento fotográfico, achados empíricos da Psicologia Experimental e a preservação do princípio da presunção de inocência: MATIDA, Janaina; CECCONELLO, William Webber. Reconhecimento fotográfico e presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 1, p. 409-442, 2021.
8 Cf. MARTINS, Rui Cunha. Estado de direito, evidência e processo: incompatibilidades electivas. Duc In Altum-Cadernos de Direito, v. 3, n. 3, 2011.
9 O antropólogo Kabengele Munanga adverte que o discurso de um Brasil mestiço foi usado justamente para silenciar, na arena sociológica e política, relevantes debates de identidades étnico-raciais que constituem nossa sociedade e como forma de não reconhecer as essas identidades direitos fundamentais para sua sobrevivência intergeracional. Cf. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Autêntica Editora, 2019.
10 Cf. LOFTUS, Elizabeth F. Eyewitness testimony. Harvard University Press, 1996; LOFTUS, Geoffrey R.; LOFTUS, Elizabeth F. Human memory: The processing of information. Psychology Press, 2019.
11 Nesse sentido: VIEIRA, Antônio. Riscos epistêmicos no reconhecimento de pessoas: contribuições a partir da neurociência e da psicologia do testemunho. In: Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Ano 2. Nº3. Salvador: IBADPP, p. 14-16.
12 Referência à música Identidade, de Jorge Aragão.
13 FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007.
14 Em entrevista à revista Piauí, Luiz Carlos da Costa Justino narra como foram seus dias no cárcere e depois que saiu da prisão. Disponível aqui. Acesso em 07 out. 2021.