Em 2009 surgiu no Senado Federal o PL 156 com o escopo de produzir um novo Código de Processo Penal. O anteprojeto de um novo CPP foi elaborado por uma comissão de juristas, presidida pelo Min. do Tribunal de Justiça Hamilton Carvalhido e composta por Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Correa, Eugenio Pacelli de Oliveira, Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Júnior, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.
Aprovado pelo plenário, foi remetido à Câmara dos Deputados em 23/11/2011, ou seja, desde então, já se passaram mais de 10 anos da proposta inicial.
Na Câmara passa a tramitar sob o número PL 8.085/2010. Foram inúmeras emendas, muitos PL apensados, reuniões, audiências, uma energia gigantesca empenhada ao redor da elaboração de um novo CPP.
Não obstante, em 13/06/2018, o deputado João Campos apresenta um substitutivo ao PL 8045/2010. Uma comissão especial, em 2019, passa a trabalhar o texto. No entanto, em junho de 2021, em razão do escoamento do prazo regulamentar em maio, sem que tenha sido encerrada a votação do parecer final do relator, a referida comissão é extinta pelo presidente da Câmara, o deputado Artur Lira. No mesmo mês, é instalado, pela presidência da Câmara dos Deputados, o Grupo de Trabalho (GT) para apresentar parecer sobre o novo Código de Processo Penal (PL 8045/10).
O GT encontra-se em funcionamento e coordenado pela deputada Margareth Coelho (PP-PI). O deputado João Campos continua como relator da matéria.
O texto original foi elaborado por uma comissão de juristas do Senado. Na Câmara, foram apensadas aproximadamente 377 propostas sobre o tema. A partir do relatório do deputado João Campos, apresentado em abril, surgem disputas de instituições e autoridades contrárias e favoráveis às mudanças por conta das alterações propostas. Aqui já se pode lançar uma primeira pergunta. Onde a população negra, principal alvo do sistema de justiça criminal, se insere nessa discussão?
Como é sabido, o atual Código de Processo Penal é de 1941, completa este ano, em 3 de outubro, exatos 80 anos. O que isso nos tem a dizer? Que, uma vez aprovado, seguramente o novo CPP regerá o sistema de justiça criminal ao menos nos próximos 50 anos.
Com efeito, precisamos de um CPP que caminhe para o futuro e não deite raízes para o passado que é marcado pela escravidão e e diversas formas de autoritarismo.
Como é sabido, não obstante as ideias iluministas e liberais do século XVIII, o sistema penal no Brasil nesse período imperial foi definido pela escravidão, que impôs, mesmo nessa ambiência liberal, a pena de morte em nosso ordenamento. Com a abolição da escravidão em 1888, a legislação penal reagiu de imediato com um Código Penal de 1890, no início da República, que representou um grande alargamento no encarceramento de corpos negros. Já em 1941, a inspiração do CPP, ora em vigor, foi o fascismo italiano, que teve sua expressão jurídica através do Código Rocco.
Diante desses impulsos (80 anos do Código de Processo Penal, Grupo de Trabalho voltado ao Projeto de um novo CPP), a coluna Olhares Interseccionais dedicará alguns artigos para um debate sobre a pretensa reforma em curso, pois, afinal, os instrumentos sedimentados na legislação processual são vetores importantes na condução de um gigantesco número de pessoas presas ao cárcere, na invisibilidade de inúmeras vulnerabilidades que gravitam em torno do sistema de justiça criminal, de modo que um olhar sensível às questões de raça, classe e gênero contribui muito para o aprofundamento do debate.
O substitutivo deve ser criticamente analisado a partir de uma perspectiva de pleno comprometimento com uma estrutura processual acusatória. Um mecanismo cruel, racista e encarcerador, como tem se mostrado o reconhecimento de pessoas, destacadamente na modalidade fotográfica, não pode ser regido pela nova ordem processual sem uma profusa e radical revisão crítica. Nesse cenário, temas como Justiça restaurativa, Recognição Visuográfica e tantas outras novidades que pretendem ser introduzidas pelo novo CPP devem ser objeto de um amplo e plural debate.
Um dos pontos de partida de nosso olhar sobre o texto do substitutivo reside em um ensaio de Giorgio Agamben designado por "O que é o contemporâneo?"1.
Sustenta o filósofo italiano que é "verdadeiramente contemporâneo" aquele que não coincide perfeitamente com seu tempo, que não cede às pretensões de seu tempo e que este anacronismo permite melhor compreender o seu tempo. Prossegue o filósofo dizendo que contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Afirma, ainda, que todos os tempos são obscuros para quem experimenta a contemporaneidade.
É a partir da opacidade de nosso tempo, diante das pretensões autoritárias, racistas e punitivistas, que nos vemos desafiados a analisar as inovações propostas, não partindo do que está supostamente visível, mas sim buscando as entrelinhas de um autoritarismo que se vende como progressista.
Em sua obra "homo sacer", indispensável à compreensão do poder na contemporaneidade, Agamben afirma que o "campo de concentração", ou seja, que as práticas totalitárias ainda atuam nas democracias contemporâneas e é necessário reconhecer tais práticas em suas formas travestidas e metamorfoseadas2. Alargando a crítica para uma perspectiva decolonial, é possível investigar a hipótese de que a senzala do período colonial brasileiro possa ser considerada um ancestral do campo biopolítico.3 Seguindo na mesma linha, mas com essa perspectiva de epistemologias do sul e afrocentradas, é necessário reconhecer nos camburões os navios negreiros e nas prisões as novas senzalas, no monitoramento a bola ao pé e a máscara de flandres.
A escravidão brasileira parece esquecida diante dos novos horrores do século e diante da ordem do discurso que pretende ocultá-la como um problema já conhecido e superado. Afigura-se absurdo supor que o campo biopolítico surge apenas no século XX e de igual modo absurdo pensar que a escravidão não mereça mais qualquer análise, bem como supor que seus traumas tenham sido todos superados na nossa sociedade e que a experiência da escravidão pertença tão somente ao passado remoto4.
Para trocar ainda mais em miúdos, na linguagem simples de um pescador de Arraial do Cabo: "doutor, o problema não está na frase e sim no etc."
Um olhar detido no substitutivo nos eixos essenciais para um processo penal democrático, como os temas da prova e prisão, é possível ver os rastros do atraso que se propõem reger nossa liberdade pelas próximas décadas. Portanto, o presente ensaio é um convite ao leitor para acompanhar aqui, na coluna olhares interseccionais, alguns apontamentos críticos sobre o texto e que Oxalá permita que os Grupos Temáticos e os parlamentares sejam sensíveis às reflexões dos diversos setores que devem ser ouvidos nesse processo de produção legislativa.
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1 Agamben, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009. p. 55-73.
2 Agamben, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 129 e 182.
3 Nascimento, D. A. (2016). A exceção colonial brasileira: o campo biopolítico e a senzala. Cadernos De Ética E Filosofia Política, 1(28), 19-35.
4 Idem.