Olhares Interseccionais

Desmistificando a meritocracia

Desmistificando a meritocracia

14/9/2021

"Tem que acreditar, desde cedo a mãe da gente fala assim:
Filho por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.
Aí passado alguns anos eu pensei:
como fazer duas vezes melhor, se você está pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão,
pela história, pelo preconceito pelos traumas, pelas psicoses, por tudo que aconteceu?
Duas vezes melhor como? Ou melhora ou ser o melhor ou é o pior de uma vez.
E sempre foi assim. Se você vai escolher o que tiver mais perto de você,
o que tiver dentro de sua realidade. Você vai ser duas vezes melhor como?
Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que inventou isso aí?
Acorda pra vida, rapaz!"

Racionais Mc’s – A vida é desafio 

As revoluções liberais do século XVIII consolidaram as bases para a consagração jurídico-constitucional do princípio da igualdade na sua dimensão formal, determinante de um tratamento legal igualitário, sem distinções, privilégios ou benefícios de qualquer natureza. Com efeito, em seu estágio embrionário, a normatização do princípio da igualdade concentrou-se na proibição de privilégios decorrentes da ascendência ou da classe social das pessoas, elevando o dogma da meritocracia, que estabelece o mérito individual como critério para a distribuição dos bens jurídicos.

Dessa maneira, o conteúdo jurídico da igualdade formal institui uma sociedade meritocrática, fundada no princípio do achievement ou realização – baseado na capacidade individual –, e não mais no princípio da ascription ou atribuição – assentado em regalias hereditárias. O propósito era a extinção das diferenças estamentais na aplicação da lei e, portanto, a superação da divisão da ordem jurídica em razão da posição social das pessoas, buscando-se, então, o alcance geral da lei e de seus efeitos.

Mas será que a mitificação da meritocracia não estaria provocando o seu desvirtuamento de modo a torná-la instrumento da manutenção dos privilégios que ela deveria repelir? Por que, numa sociedade meritocrática, mesmo depois de mais de 133 anos de abolição formal do sistema escravocrata, pessoas negras – salvo raras exceções – não ocupam espaços de poder e decisão no Brasil? Ou, ainda, por que o sistema de justiça permanece eminentemente branco e masculino, especialmente nos mais altos níveis das carreiras jurídicas?

Segundo o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros de 2018,1 divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, mulheres representam 38% da magistratura brasileira, embora sejam a maioria da população brasileira. Quando se analisa a presença feminina no segundo grau, mulheres são apenas 23%. No que se refere ao perfil étnico-racial, apenas 18,1% (16,5% pardos e 1,6% pretos) das pessoas que integram a magistratura são negras, sendo que 56% da população brasileira é negra. Sob outra perspectiva, um quinto das/os magistradas/os brasileiras/os têm familiares na carreira e 51% têm familiares em outras carreiras do direito.

Será que essa hegemonia branca e masculina na magistratura brasileira – e em todos os espaços de poder e decisão no Brasil – é mesmo fruto da meritocracia? Afinal, quem define o que é mérito nas sociedades ditas meritocráticas?2

Na verdade, o monopólio do privilégio branco – decorrente da supremacia branca – tem como resultado o domínio da própria meritocracia, transmitida seletivamente de geração a geração. Dito de outro modo, a elite branca brasileira detém não apenas o privilégio para acessar bens, recursos e status necessários para assegurar o acesso ao dito mérito, mas também o poder de definir o próprio mérito. A meritocracia brasileira é brancocêntrica e androcêntrica.

É preciso, nesse ponto, recordar que, no Brasil, pessoas negras estiveram formalmente proibidas de frequentar a educação formal por décadas. Primeiramente, por meio do Ato Oficial Complementar à Constituição Imperial de 1824, que proibia negros e leprosos de frequentarem as escolas. Três décadas depois, foi publicado o decreto 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854, responsável por aprovar o regulamento para a reforma do ensino primário e secundário do Município da Corte. Em seu artigo 69, o decreto estabelecia a proibição do acesso de escravos – assim como de meninos não vacinados ou que padecessem de moléstias graves – às escolas. Sob esse prisma – que, por óbvio, não esgota a complexidade das vulnerabilidades e violências historicamente impostas à população negra brasileira -, já se percebe que a tal corrida pela meritocracia, no Brasil, já começa, de partida, muito desigual. 

Nesse sentido, a defesa da meritocracia pura – que, em grande medida pode ser traduzida como um apego à hegemonia – resulta na manutenção do status quo em prol dos mesmos grupos detentores do poder. A distribuição puramente meritocrática dos bens jurídicos não satisfaz os imperativos de justiça social, notadamente se a aquisição, a manutenção e a valorização de aptidões não são acessíveis a todas as pessoas de forma equitativa. Os méritos, portanto, não podem ser vistos como atributos estritamente individuais e estáticos, já que também são produzidos, transmitidos e atribuídos social3 e racialmente.

Atribuir exclusivamente ao indivíduo a responsabilidade pelo status social que ocupa significa desconsiderar convenientemente o contexto, afastando a necessidade de intervenção estatal em matéria de redistribuição. Concluir, sem qualquer análise crítica do contexto, que a situação de des/vantagem de determinados grupos raciais – ocupando persistentemente posições consideradas inferiores/superiores na sociedade – se deve puramente ao desempenho dos indivíduos corresponde a atribuir a estes capacidades e desempenho conforme a raça. Sim, porque se cada sujeito é integralmente responsável ou culpado por suas conquistas e posições na sociedade, e indicadores demonstram, de modo recorrente, que pessoas negras obtêm resultados inferiores na hierarquia social, ou se acredita que isso é produto do mero acaso, ou se atribui essa realidade a uma espécie de deficiência de mérito própria do grupo racial. Daí porque não é possível se falar em responsabilidade individual sem avaliar o contexto – histórico, social, político, cultural e jurídico –, capaz de condicionar em boa medida os resultados e posições das pessoas em determinada sociedade4.

Assim, também o princípio meritocrático deve ser empregado de maneira contextualizada. Caso contrário, desconsideram-se as desigualdades geradas pelos contextos vulnerabilizantes, o que corresponderia a aferir o mérito conforme os privilégios. Seriam merecedoras, com poucas variações, apenas aquelas pessoas cuja autonomia não enfrenta obstáculos significativos, num ciclo vicioso de restrição da igual liberdade de todas/os, em prol da máxima liberdade de poucas/os.

Nesse contexto, as ações afirmativas raciais – comumente criticadas, sob o argumento de que violam o princípio do mérito – são medidas de fundamental importância para combater o monopólio do mero privilégio e a absolutização da meritocracia, a partir da sua contemporização com outros princípios e valores. As ações afirmativas na seara racial visam à reparação histórica; objetivam não somente a redistribuição de riquezas, mas também de direitos, de meios e de posições, imprescindível para promover a desracialização hierárquica da sociedade. Por meio delas opera-se não a eliminação do mérito nos mecanismos de seleção, mas a sua correção, a sua flexibilização contextualizada, de modo a proporcionar a igualdade de oportunidades nos espaços em que há acumulação racializada de oportunidades atribuíveis ao mérito5.

Voltando à discussão sobre o perfil do sistema de justiça brasileiro e de seus concursos públicos, é importante refletir sobre o efetivo compromisso dessas instituições com a democratização e abertura de seus quadros – e, consequentemente de seus serviços – para a diversidade. Apesar da implementação do sistema de cotas nestes concursos, ainda testemunhamos a nomeação de turmas de magistradas/os, promotoras/es de justiça, defensoras/es públicas/os etc., inteiramente formadas por pessoas brancas. Esse resultado pode ser atribuído, em grande parte, aos critérios ditos puramente meritocráticos definidos para o acesso às respectivas carreiras.

Notas de corte, cláusulas de barreira, conteúdo das provas, formação (quase sempre completamente branca e masculina) das comissões de concurso, entre outros fatores são, ainda que indiretamente, filtros que acabam por excluir pessoas negras do certame. Sabe-se que o tipo de competência exigida na primeira etapa destes concursos diz respeito, principalmente, à memorização de leis, com seus pontos, vírgulas e crases. Quem são as pessoas, no Brasil, que podem acessar o necessário ócio para adquirir essa competência? A exigência – incluída pela Emenda Constitucional nº 45/2004 – de três anos de atividade jurídica (art. 93, inciso I, art. 129, § 3º, CF) também opera de forma seletiva, quando levamos em consideração que a desigualdade racial e o racismo institucional criam severos obstáculos para que pessoas negras possam acessar esses postos de trabalho para demonstrar a experiência exigida. Ademais, é sabido que muitas pessoas acabam comprovando essa experiência apenas com assinatura de petições iniciais em escritórios de advocacia, sem que exerçam efetivamente as respectivas atividades jurídicas. Pessoas negras raramente acessam esse privilégio. Além disso, os títulos que costumam ser valorados nos concursos do sistema de justiça (pós-graduação, mestrado e doutorado) também não são, na sociedade brasileira, acessados em condições de igualdade por pessoas negras. O que faz com que uma pessoa que comprove suposta experiência em atividade jurídica e demonstre um mérito individualista quantificado tenha mais valor dentro de uma instituição do sistema de justiça do que uma pessoa negra, oriunda de comunidades, com trajetória de vulnerabilidades raciais, familiares e sociais, e com vivência nos movimentos sociais?

É preciso assumir uma postura de compromisso político com a diversidade, avançando nas políticas públicas de igualdade racial para exigir não apenas a mera reserva de vagas, mas também o preenchimento das vagas reservadas. Isso requer a remoção de determinados obstáculos unilateralmente delineados pelos grupos dominantes e que minam a ideia de solidariedade social. Nesses moldes, cada um/a considera suas conquistas como resultado exclusivo de seus próprios méritos6, eximindo-se completamente da responsabilidade pelo destino da/o outra/o e da sociedade.

Reconhecer os privilégios decorrentes da preservação da hierarquização racial da sociedade7 - e as consequentes restrições aos membros de grupos raciais vulnerabilizados – é o primeiro passo para a assunção de responsabilidade pela construção coletiva de um futuro racialmente mais justo para todas/os.8

Afinal, qual a sociedade que queremos, para além dos meros discursos antirracistas?

Referências

DWORKIN, Ronald. A discriminação inversa. In Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 435-494.

______. Ação afirmativa: é justa? In A virtude soberana – A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 581-607.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

SANDEL, Michael J. A ação afirmativa em questão. In SANDEL, Michael J. Justiça – o que é fazer a coisa certa? Tradução Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 21ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

STERBA, James P. Defending Affirmative Action, Defending Preferences. In COHEN, Carl; STERBA, James P. Affirmative Action and Racial Preference – A debate. New York: Oxford University Press, 2003, pp. 191-278.

THARAUD, Delphine; PLANCKE, Véronique van. Imposer des "discrimination positives" dans l'emploi: vers un conflit de dignités? In GABORIAU, Simone; PAULIAT, Hélène (dir.). Justice, éthique et dignité. Actes du coloque organisé à Limonges les 19 et 20 novembre 2004. Limonge: Presses Universitaires de Limonges, 2006.

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1 Disponível aqui. Acesso em 9 de setembro de 2021.

2 Ronald Dworkin, A discriminação inversa, p. 446, afirma que "não há combinação de capacidades, méritos e traços que constituam o 'mérito' no sentido abstrato". 

3 Cfr. Delphine Tharaud e Véronique van der Plancke, Imposer des "discrimination positives" dans l'emploi: vers un conflit de dignités?, p. 204.

4 Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Racismo e Antirracismo no Brasil, p. 174, afirma que "a sobrerrepresentação de pessoas com uma mesma característica 'naturalizada', em qualquer distribuição de recursos, deve ser investigada, não porque seja anormal, mas porque 'sexo', 'cor', 'raça', 'etnia' são construções sociais usadas, precisamente, para monopolizar recursos coletivos".

5 A expressão é de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, Racismo e antirracismo no Brasil, p. 203.

6 Ver Michael J. Sandel, A ação afirmativa em questão, p. 221.

7 Cfr. James P. Sterba, Defending Affirmative Action, Defending Preferences, p. 266.

8 Ronald Dworkin, Ação afirmativa: é justa?, p. 606, afirma que "a ação afirmativa é um empreendimento voltado para o futuro, e não retroativo (...). As grandes universidades esperam educar mais negros e outros alunos minoritários, não para compensá-los por injustiças passadas, mas para proporcionar um futuro que seja melhor para todos, ajudando-os a acabar com a maldição que o passado deixou sobre todos nós".

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Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

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Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

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Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.