Olhares Interseccionais

Não nos acostumaremos a contar os corpos: notas sobre o (mais um) Anuário da Segurança Pública

Não nos acostumaremos a contar os corpos: notas sobre o (mais um) Anuário da Segurança Pública.

23/7/2021

"Não verás país como esse
na sua convulsão pacífica
na sua vontade fabril
em nossa morte gentílica! 

Um pesadelo colonial, ainda hoje
pesando sobre nossas cabeças
perfurando de balas
e guloseimas de fel
nosso existir negro
Um respirar de alívio
travestido num suspiro diário
de estar, por enquanto, vivo"

(Canto I, em Papel de Seda, de Abelardo Rodrigues)

Está tudo dado; não há novidades a contar. As palavras resistem ao papel, porque sabem que se repetem. É sempre mais do mesmo, mesmo sangue preto que jorra nas notícias e não causa espanto. Só escrevo porque a pele não me dá outra opção; porque calar é estar morto.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) é uma organização não-governamental integrada por profissionais das mais diversas áreas (policiais, sociólogos, gestores públicos) e pela sociedade civil. Sua atividade é baseada em evidências, coletadas em todos os estados do país, apesar da dificuldade (por vezes deliberada) de alguns deles contribuírem com a informação necessária para os levantamentos feitos1.

Uma das principais publicações do FBSP é o Anuário da Segurança Pública, cujo primeiro número foi lançado no ano de 2007. Este ano, foi publicada e publicizada a 14ª edição2, contando com nada menos que 19 textos, além de infográficos e tabelas que gritam sobre a violência no país. Os números são estarrecedores, mas não têm estarrecido. Eles são lidos – ou nem lidos são -, e depois são "retomadas as atividades do dia: lavar os copos, contar os corpos e sorrir"3.

Enquanto algumas verdades doloridas são reexpostas nos (desnu)dados do Anuário, alguns mitos são derrubados - mais uma vez.

"A polícia que mais mata é a que mais morre". Essa afirmação é um lugar-comum que sói se repetir sem cuidado no noticiário4 – além de ser uma corrente em discursos populares. É preciso refinar esse argumento, por diversas razões. De modo geral, evidenciar, no mesmo contexto, que a polícia mata e (também) morre contribui para o reforço de uma lógica de guerra social, em que a violência atingiu um ponto incontrolável. Essa construção discursiva frequentemente vem acompanhada de propostas de recrudescimento do aparato repressivo como forma de solucionar o problema da "bandidagem".

As intervenções policiais mataram 6.416 civis em 2020. Seis mil, quatrocentos e dezesseis civis são seis mil, quatrocentas e dezesseis histórias, famílias, narrativas, futuros, comunidades. Gente como Natanael, vítima da Chacina do Cabula/Salvador/Bahia, ocorrida em 2015 e até hoje sem desfecho. Morto pela polícia, Natanel vive no depoimento-memória da sua mãe, Marina: "A crueldade é o que mais me dói. Minhas noites de sono estão perdidas. Durante o dia, eu não estou lembrando dele porque eu não tenho espaço. Eu faço mostruário. Eu faço a primeira peça para ir por corte, então não tenho tempo de lembrar de nada. Nem da casa eu lembro. Então, quando dá meio dia, eu lembro do que ele comia... É tanto que não estou nem fazendo nada que ele comia para a gente comer. Nada. Faço tudo ao contrário, para não lembrar. Aí eu penso nele: será que ele já comeu?"5.

No mesmo período, ano de 2020, 194 policiais foram assassinados. O número é infinitamente menor, mas toda morte violenta é indesejada. Aliás, em tempos covídicos, que tardam em findar, é importante evocar outro dado que o Anuário revela: 472 policiais morreram em razão do vírus, um número mais que duas vezes maior que a letalidade contra policiais. A realidade pandêmica em que estamos imersos é capaz de comprovar que o descaso e a vulnerabilização da vida policial podem se apresentar de diversas maneiras. Mais: a exposição à ação de criminosos não é a principal delas – sobretudo se considerarmos que 72% dos agentes de segurança são mortos no horário de folga. 

Entre mortes civis e militares, há uma "coincidência" que o dado frio tenta ocultar: quem mais morre é gente preta. Quando a Polícia está em "campo", a sua bala acerta uma vida negra em 8 de cada 10 ações. As vítimas da letalidade policial são 78,9% negras, 76,2% jovens (entre 12 e 29 anos) e 98,4% do sexo masculino. Dos agentes policiais vitimados, 6 de 10 são negros, quase 60% têm entre 30 e 49 anos e 98,4% também são do sexo masculino.

É preciso despertar para a perversidade extrema do racismo quando está explícito que policiais negros estão aniquilando outras pessoas negras, enquanto seus colegas negros estão também morrendo e sua condição de alvo é certa. Lembro do grande Machado, em Pai contra a Mãe6, a contar como a subalternização das vidas negras tende ao fratricídio, resultado da falta de consciência e da impotência para construir um presente transformador. O Prof. Silvio Almeida é didático e categórico ao traduzir nossa realidade: "Pessoas negras, portanto, podem reproduzir em seus comportamentos individuais o racismo de que são as maiores vítimas. [...] Somente a reflexão crítica sobre a sociedade e sobre a própria condição pode fazer um indivíduo, mesmo sendo negro, enxergar a si próprio e ao mundo que o circunda para além do imaginário racista. Se boa parte da sociedade vê o negro como suspeito, se o negro aparece na TV como suspeito, se poucos elementos fazem crer que negros sejam outra coisa a não ser suspeitos, é de se esperar que pessoas negras também achem negros suspeitos, especialmente quando fazem parte de instituições estatais encarregadas da repressão, como é o caso de policiais negros"7.

Fora do binômio polícia/civis, o quadro é (deveria ser) igualmente nauseante.  As MVI’s (mortes violentas intencionais), por dois anos decrescentes, voltaram a crescer, fazendo 50.003 vítimas no ano passado. Estados do Nordeste e do Norte lideram os necro-índices: no Ceará, morreram, de forma violenta, 45,2 pessoas por 100 mil habitantes; na Bahia, 44,9; em Sergipe, 42,6; e, no Amapá, 41,7.

É tão repetitivo quanto necessário dizer que essas mortes não são aleatórias, o que desfaz outra afirmação irresponsável, a de que "morrem mais pessoas negras porque são maioria no país". Na população geral, cerca de 54% das pessoas são negras. Dentre as mortes violentas, 76,2% são pretas ou partas. É a abominável cifra de 38.152 pessoas negras, quase todas do sexo masculino, a maior parte jovens, com vidas ceifadas - por armas de fogo em 78% das vezes. Esse é o retrato esperado de um Brasil que dobrou o número de armas de fogo registradas em 3 anos, alcançando a marca de 1.279.491 (um milhão, duzentos e setenta e nove mil, quatrocentos e noventa e um) registros ativos.

Desgraçadamente, a realidade das mulheres e meninas é ainda pior. Mesmo com a força do silenciamento, foram contabilizados 52.539 estupros contra pessoas do sexo feminino só em 2020. O perfil vem se repetindo ao longo dos anos: a maioria das vítimas são vulneráveis, incapazes de consentir com a prática sexual, têm até 13 anos, e seus algozes são pessoas conhecidas. Há muito já se foi (deveria ter ido) o mito do estuprador desconhecido que ataca nos becos e vielas, um estereótipo que contribui para ocultar a violência nos lares e ambientes familiares. Aliás, há quase duas décadas, já afirmava a Profa. Vera Regina Pereira de Andrade: "Paulatinamente foi descobrindo-se que o estupro ocorre com muito mais freqüência do que se imaginava, que cada homem pode ser o autor, que cada mulher pode ser a vítima e que a vítima e o autor muito freqüentemente se conhecem."8.

Por fim, e mais importante, o extermínio físico das mulheres pela sua condição de gênero tem crescido. Foram 1.350 feminicídios registrados no ano passado. A cada 10 mulheres mortas por serem mulheres, 6 são negras, sendo que 8 delas foram vitimadas por companheiros ou ex-companheiros, provando como o patriarcalismo racista segue vivo e encrustado nesta sociedade que não tolera a liberdade da mulher. É a violência que "se entrelaça no tecido diário de nossas vidas", afirma Audre Lorde9.

Se é verdade – pouco visibilizada – que estamos em luta e em estado de resistência e sobrevivência diárias, pode soar incompreensível que tanta informação disponível, exposta em gráficos e infográficos, não cause uma revolução total e imediata das bases que estruturam este doído viver. A resposta talvez esteja na percepção de que a noção historicamente construída de democracia dependa exatamente da subjugação das pessoas negras. Frank B. Wilderson III complementa essa ideia, afirmando: "O afropessimismo nos ajuda a entender por que a violência que satura as vidas negras não é ameaçada de extinção apenas por ser exposta. Para que esse fosse o caso, o espectador, o interlocutor, a audiência teria que chegar a imagens como essas com um inconsciente capaz de perceber que elas mostram alguém 'ferido'. Em outras palavras, a mente teria que ‘ver’ uma pessoa com uma herança de direitos e reivindicações, cujos direitos e reivindicações estão sendo violados. Não é dessa forma que escravizados, negros, funcionam no inconsciente coletivo"10.

Não nos acostumaremos com as atividades diárias do dia, não nos acostumaremos a "contar os corpos". Apesar da ameaça constante de toda sorte de vilipêndios à nossa existência e memória, estamos vivos e vivas, escrevendo e, quando necessário, gritando!

__________

1 Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível aqui.

2 14º Anuário da Segurança Pública, Disponível aqui.

3 Lion Man, de Criolo, no Álbum Nó na Orelha. Disponível aqui.

4 Apenas a título de exemplo: No Rio, a polícia que mais mata é também a que mais morre. Disponível aqui.

5 Disponível aqui.

6 Pai contra Mãe, de Machado de Assis, em Machado de Assis, Contos e Crônicas. Ed. Malê, 2019.

7 Silvio Almeida, O que é Racismo Estrutural? Ed. letramento, 2018, p. 53

8 Vera Regina Pereira de Andrade. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher, p. 25. Revista Sequência, n. 50, p. 71-102, jul. 2005.

9 Audre Lorde. Irmã Outsider. Ed. autêntica, 2020, p. 148

10 Frank B. Wilderson III. Afropessimismo. Ed. Todavia, 2021, p. 256.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.