"Não sou ninguém, nem tenho pra quem apelar
Só tenho o meu bem, que também não é ninguém
Quando a polícia cai em cima de mim
Até parece que sou fera
Quando a polícia cai em cima de mim
Até parece que sou fera"
Camelô- Edson Gomes
A trama do racismo é infinita. A moderna fábrica de tecelagem inova em estampas raciais multicores, que tentam esconder as intensas manchas de sangue negro que enriquecem, desvairadamente, a brancura do poder econômico. Quando a jovem preta que carregava um grandioso futuro no seu útero foi cravejada por uma bala, as semanas seguintes pareciam dizer — tantas eram as fotos distribuídas nas redes sociais — que ela seguia viva, como se ainda pudesse exercer a arte de modelar sorrisos e espantar olhos com sua beleza de majestade negra. Seu sorriso ali, expressivo nas fotos do mundo virtual, enquanto seus corpos (o maior e o menor unidos pela fecundação da vida) sentiam a decomposição inicial do agir silencioso do rito biológico da morte. Nos dias seguintes, a Farm, uma marca eminentemente branca, quis fazer caridade mercadológica1, valendo-se da morte daquela jovem-menina.
Ninguém nunca suspeitou da Farm, nem suspeitará, dir-se-á que a negritude é de uma desconfiança severa da boa vontade dos que querem ajudá-la. Ninguém quer suspeitar da filantropia capitalista, que, religiosamente, sepulta corpos negros. Walter Benjamin já havia dito que "o capitalismo deve ser visto como uma religião", em que todo dia há uma "celebração de um culto sans rêve et sans merci [sem sonho e sem piedade]", no qual se deve adorar o consumo exacerbado, a "ostentação de uma pompa sacral."2
Enquanto mais uma morte negra pulsa nas notícias, a metrópole segue seu ritmo indolente, acenando de longe para mortes sociais de pessoas negras, principalmente daquelas que são rotineiramente abordadas só por perambularem no espaço urbano, apenas por tentarem chegar no outro lado de uma cidade geograficamente racista. A cidade não lhes pertence. Por isso, é importante a existência de subúrbios, comunidades, movimentos, terreiros, que são os negros cobertores que se esforçam por acolher essas vidas apedrejadas pelo racismo.
Ainda assim, o Terror de Estado é impiedoso, invade esses quilombos da contemporaneidade e, ao suposto de uma “suspeita qualquer”, desrespeita a ADPF 635, conhecida como ADPF das Favelas, para esparramar sangue nas escadarias e casas de Jacarezinho. Os ecos dos tiros soam até agora nas famílias atravessadas por balas (des) identificadas. O Estado não respeita o próprio Estado. Definitivamente, a cidade não deseja a presença negra. Pessoas negras devem ser paralisadas no seu existir. E, de fato, a cada injustificada operação policial, a cada abordagem policial realizada a partir de uma ficcional atitude suspeita, o racismo, na sua forma humilhação, impossibilita o nosso viver, naquilo mais genuíno que a vida pode oferecer: a suavidade do amor.
A polifonia da dor negra jorra por todos os lados. Incessante! O genocídio da população negra – que opera da “morte matada” à morte social - é promessa antiga, ódio sistêmico, pronto para agir, especular, fingir, retramar e sempre muito bem armado. Das encomendas de limpezas raciais de bairros nobres à falsificação da realidade com a história da “bala perdida”, o coveiro não dá conta de tanta carne preta. E a branquidade passa serena e altiva por tudo isso, porque, para ela, o amanhã é uma esperança ensolarada. Mas, para as negritudes, não. A linha do tempo do racismo é impecável e gélida, despreza essas convenções de ontem, hoje e amanhã. É que ser negro é ser, constantemente, periférico. É saber que a morte lhe domina o circuito dos passos, sempre iminente, e arrasa qualquer sentido de liberdade.
No campo do terror antinegro, pouca importa sua autorrepresentação sobre a sua negritude. Na atmosfera do Terror de Estado, quando se tenta abrir o próprio carro, você, preto, que acha que é um vitorioso, poderá ser abordado e, até dizer que é um alguém ..., alguns tapas já balançaram seu rosto. Depois não haverá espelho que reconstrua essa imagem de orgulho de si, que, a muito custo psicológico, teve que recolher dos traumas de infância, de complexos de inferioridade que lhes foram impostos por aquela gente que gosta de um privilégio histórico. A negritude teve seu mínimo narcisismo roubado.
Nada de dizer que sofreu microagressões na sua rotina de trabalho, na relação conjugal, com os amigos que curtem um cinecult, nada disso, toda agressão racial é uma grande agressão. Essa ideia de microagressão racial não alcança a multidimensionalidade do racismo, que, a todo instante, tenta subjugar a ancestralidade negra. Corpos negros tombam. Seguem tombando como cobaias de um suposto bem-estar comum. Lembremos disso sempre.
Por essas lentes de reflexão, é impossível pensar, no Brasil, a abordagem policial que rotineiramente ocorre sob a alegação de “fundada suspeita”, sem colocar o racismo como base de análise. Quem são os "abordáveis"? O que seria essa "fundada suspeita"? São perguntas iniciais que já apontam para a carga racial de um certo ativismo policial. Dois exemplos, um mais antigo e outro mais recente, nos aproximam mais ainda da problemática racial dessas suspeitas abordagens policiais.
O ex-jogador de futebol Zé Roberto, recentemente, relatou que, no início de sua carreira, na década de 90, quando comprou um carro do modelo Eclipse GS, teve que vendê-lo em três meses, porque era constantemente abordado pela polícia quando — saindo da Penha para São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo — ia visitar sua namorada3. Conforme seu relato, houve dias em que a polícia o seguia e deixava para abordá-lo quando estava perto da casa de sua namorada. Qual seria o motivo dessa abordagem insistente e não-discricionária feita pela polícia, se não a cor da pele que dirigia um carro luxuoso?
Em maio de 2021, um ciclista youtuber que se divertia fazendo manobras com sua bicicleta, em um parque na Cidade Ocidental (Goiás), foi, brutalmente, abordado por policiais militares que resolveram parar a viatura, forçá-lo a colocar as mãos na cabeça, gritando que o procedimento era padrão e que aquela abordagem era uma ordem legal. O jovem Filipe Ferreira, negro que era, com uma arma de fogo que lhe foi apontada, acabou sendo algemado e até hoje não foi informado sobre os porquês de ter sido abordado, numa tarde ensolarada, num parque praticamente deserto, por agentes policiais que deveriam estar ali, na realidade, para lhe garantir uma melhor sensação de segurança. Se a cor da pele, que registra a marca do racismo brasileiro4, não foi determinante para o exercício dessa "discricionária arbitrariedade" policial, qual teria sido o motivo então desse ódio estatal gratuito dirigido a Filipe Ferreira? Nesse ponto, alcança-se a pensamento de André Nicolitt, quando afirma que, no Brasil, o negro é visto como um suspeito natural.5
A tal fundada suspeita é expressão que aparece no Código de Processo Penal nos artigos 185,§2º inciso I(interrogatório por videoconferência), art. 244 (busca pessoal) e, de certa forma, no art. 304, §1º (prisão em flagrante). Nessas três situações processuais, a ideia de fundada suspeita está conectada com a possibilidade concreta de uma prática criminosa. Há, portanto, um substrato empírico mínimo que indique que determinado crime ocorreu. Sabe-se que essa mínima exigência de substancialidade fática não retira por completo o caráter poroso, extremamente aberto e, por isso, manipulável dessa expressão, que acaba, mediante recursos de linguagem retórica, autorizando invasivas ações estatais em relação aos direitos fundamentais dos/as alcançados/as pelo processo penal.
E, curioso que seja, essa incompletude significante da expressão "fundada suspeita" no processo penal nos permite enxergar o quanto são arbitrárias as abordagens policiais feitas, "aleatoriamente", em pessoas que apenas transitam pela cidade, a pé, de ônibus ou até mesmo de carro, já que, nesses casos, o público-alvo é, em regra, negro, e não há qualquer substrato fático que aponte para a necessidade de uma abordagem policial. Portanto, nessas abordagens, em sua maior parte conduzidas pela polícia militar, não há nada juridicamente objetivo que as justifique. Isso significa que se a polícia for questionada sobre as razões que motivaram sua atuação opressora, não saberá dizer quais são essas razões, reduzindo-se a usar uma justificativa monótona de que se trata de um procedimento-padrão de abordagem, que é uma zona urbana de violência e que ali esteve para evitar delitos.
Isso mostra como a fundada suspeita usada para abordagens policiais, vazias de qualquer juridicidade, são ficções mortíferas criadas para capturar corpos negros. E se é preciso cumprir metas de abordagens, prisões, rondas, nada menos problemático do que carregar o lixo urbano, feito de detritos-negros, para os lixões itinerantes das cidades, camburões e outros espaços de aço destinados a sufocar pretas/os. A conta social e econômica sai muito barata para a branquidade estatal que organiza as ordens de captura de negras/os. E se uma polícia possivelmente preta aborda e prende outros tantos/as pretos/as, o teatro racial está bem posto, porque se dirá, salivando a boca, que não há racismo quando pretos enjaulam outros pretos. Mas quem dá esse aval para essa desmedido agir policial é uma mão branca, que usa da mágica da invisibilização da própria identidade racial branca e se defende com o manto encardido do princípio da igualdade jurídica, como se a distribuição da repressão estatal fosse algo proporcional.
Conforme relatório de pesquisa formulada pelo Centro de Estudos e Segurança e Cidadania (RJ)6 no ano de 2003 — destaque-se ainda que outra pesquisa do mesmo perfil se repetirá neste ano de 2021 — , verificou-se que, na cidade do Rio de Janeiro, "as revistas corporais ocorriam em 77% das pessoas paradas a pé na rua e em apenas 20% dos parados em carros particulares. Brancos só tinham sido revistados em 33% das abordagens, e pretos, em 55%". Na referida pesquisa, foram realizadas entrevistas com policiais militares, das quais podem ser extraídos os seguintes achados empíricos:
as entrevistas com praças e oficiais da PM revelaram que não só é negativa a resposta para todas as perguntas acima, como sequer existe um discurso minimamente articulado sobre critérios de construção da suspeita, que explique com nitidez o que leva um policial a abordar e revistar alguém num ônibus ou na rua. Falas quase sempre evasivas, defensivas, sugerem a prevalência de critérios individualizados, “subjetivos”, “intuitivos”, não regulados institucionalmente – vale dizer, a ausência de parâmetros, até mesmo conceituais, que norteiem as decisões num espaço tão aberto ao exercício da discricionariedade policial. Mais do que uma orientação deliberadamente discriminatória, o que se percebe, assim, é a delegação dessas decisões à cultura informal dos agentes, a renúncia a impor-lhes balizas institucionais e, em consequência, um bloqueio de qualquer discussão interna ou externa sobre estereótipos raciais e sociais intervenientes no exercício cotidiano da suspeição.7
Nesses passos de reflexão, é indispensável pensar com Felipe Freitas a extensão do mandato policial, dessa legitimidade estatal que é dada à polícia para organizar a "ordem pública". Mas esse pensamento, como adverte o referido professor, deve ter um olhar dirigido pela perspectiva de que “a própria ação da polícia tem como característica central um 'saber da rua'”, o qual guia o cotidiano da tomada de decisão da polícia. Além disso, como lembra Felipe Freitas, "os temas raciais permaneceram secundarizados na abordagem hegemônica sobre polícias no Brasil."8
Por outro lado, esse eterno suspeitar que recai sobre as pessoas negras não é algo que vem só da polícia. É da classe média, alta, rica, da elites políticas, estatais e neo-aristocráticas, que não conseguem aceitar a mínima presença negra em ambientes de poder, de conforto econômico, que andam sempre a perguntar: que é que ele faz da vida? quem é essa pretinha metida? e aquele preto ali, fala duas línguas é? e aquela preta ali, jantando nesse restaurante?. Essa eterna suspeita é a que faz com que pessoas negras sejam sempre confundidas com vendedores de uma loja de roupas, ainda que todos funcionários estejam com roupa padronizadas, que um negro de terno, em um shopping center, seja visto sempre como um segurança, que a beleza negra passe sempre pelo adjetivo de exótico, como se bicho fosse. Explique-se, ainda, que a questão não é a singeleza dessas funções — vendedor, segurança —, e sim a atitude de rotular, automaticamente, pessoas negras a funções em que não há o predomínio da atividade do pensar.
Não querem negros/as andando livres pelas cidades, suspeitam sempre da nossa capacidade intelectual, emocional e espiritual. Querem nos definir com as sobras da tinta branca que garantem a alvura de suas casas. Tem sido assim. A branquidade do poder social e econômico tem o perene privilégio de suspeitar de pessoas negras e achar que um simples pedido de desculpas é capaz de deletar uma ofensa racial. Esquece-se, porém, que suspeitar de um/a negro/a é suspeitar de um coletivo de existências negras formadas no verbo da resistência histórica.
É, por isso, que, a cada conquista afrocentrada, a ancestralidade borrifa para o universo que a reinvenção do mundo partirá de uma solidariedade negra. Quem venceu chibatadas não se intimidará diante de suspeitas mesquinhas!
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1 Disponível aqui.
2 Benjamim, Walter; Lowy, Michael. O Capitalismo Como Religião - Col. Marxismo e Literatura (Locais do Kindle 381-382). Boitempo editorial. Edição do Kindle.
3 Disponível aqui.
4 Sobre o tema, consulte-se NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo social, v. 19, p. 287-308, 2007.
5 Disponbível aqui.
6 Cf. Ramos, Silvia; Francisco, Diego; Silva; Pedro Paulo da; Silva, Itamar. Elemento suspeito: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CESeC, 2021.
7 Cf. Ramos, Silvia; Musumeci, Leonarda. "Elemento suspeito". Abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Boletim Segurança e Cidadania, n. 8, novembro de 2004.
8 FREITAS, Felipe da Silva. Polícia e Racismo: uma discussão sobre mandato policial. 2020. Tese de doutorado (UNB).