Olhares Interseccionais

Ladrões de Bicicleta, do filme à vida - O que se extrai das abordagens de "suspeitos"

Ladrões de Bicicleta, do filme à vida - O que se extrai das abordagens de "suspeitos".

21/6/2021

Com a fé de quem olha do banco a cena
Do gol que nós mais precisava na trave
A felicidade do branco é plena
A pé, trilha em brasa e barranco, que pena
Se até pra sonhar tem entrave
A felicidade do branco é plena
A felicidade do preto é quase

Ismália, Emicida

Não é incomum no Brasil nos depararmos com abordagens, indagações ou apontamento de pessoas negras como suspeitas de cometimento de furtos. Revistas em estabelecimentos, acompanhamento por seguranças e travamento de portas giratórias são episódios corriqueiros na vida de pessoas negras.

Um recente episódio envolvendo um furto de bicicleta no Leblon, Rio de Janeiro ganhou audiência nas redes sociais e na mídia, mais uma vez promovendo debate em torno de questões raciais.

A cena nos remeteu imediatamente a um clássico do cinema, refiro-me a película italiana "Ladrões de Bicicleta" de Vittorio De Sica. Lançado em 1948, é uma obra emblemática do movimento neorrealista insurgente nos anos 40, quando a Itália vivia as consequências da Segunda Guerra Mundial e do governo fascista de Benito Mussolini.

A toda evidência, os personagens, a dinâmica, os papéis e as subjetividades construídas são diversos daqueles que substanciam o longa-metragem. No entanto, alguns aspectos estéticos são convergentes.

Antonio Ricci, um pai de família de Roma, consegue um emprego como colador de cartazes. Para tanto, necessitava de uma bicicleta imprescindível a suas tarefas. Com efeito, penhorou seus objetos e a própria casa, visando adquirir uma. Porém, sua bicicleta é roubada e, então, Antonio, com seu filho Bruno, parte em uma jornada pelas ruas da cidade em busca do objeto que lhe foi subtraído, tudo com o fim de manter seu emprego.

A trama, aparentemente singela, na verdade é um documentário social e uma tragédia moral, que traduz delicadamente a Itália do pós-guerra. O filme é construído não com atores, mas pessoas reais, filmado nas ruas.

Vittorio De Sica mapeia magnificamente os entornos de um cenário de injustiças. O descaso da polícia, as pessoas em situação de miséria que surgem no caminho de Antonio, tudo a conspirar para que o protagonista ceda à tentação de furtar uma bicicleta.

Uma característica relevante na estética neorrealista é o tratamento reducionista na filmagem. Assim, "quanto menores os fatos, mais cotidianos, quanto mais humildes os protagonistas, quanto menos eventos, quanto mais simples for o aparato usado para filmá-los e quanto mais rápido eles forem reproduzidos", o mais perto se está da "realidade"1.  

Em um dado momento do filme, Antonio se vê amaldiçoado desde dia em que nasceu e afirma: "me sinto como um homem acorrentado".

Aqui, seguramente convergem a dor e o sentimento de todo homem e mulher que nascem pretos.

A bicicleta do filme não era elétrica. Os moradores do Leblon não são operários em busca da manutenção de seus empregos e sobrevivência, ao que parece. Ao contrário, ao que indica, duas bicicletas foram objeto de furto. Um empresário, que teve a sua furtada, sequer saiu à procura. No dia seguinte, entrou na mesma loja e comprou outra. Muito diferente do drama de Antonio. Mas o espaço e os dramas se aproximam. No meio da rua, um jovem preto é interpelado por alguém que busca sua bicicleta elétrica.

A cena real (e surreal) que envolveu “os inocentes” do Leblon, na sua brevidade, no seu cariz cotidiano e na sua singeleza, traduz um drama social, um contexto político, cultural, ideológico e (des) humano. É a pintura de um país que ainda não aprendeu a olhar as cicatrizes da maioria de seu povo.

O episódio, igual a tantos que abrem o debate social, acaba por dividir opiniões e ganhar as páginas policiais. Diante desse contexto, algumas questões devem ser postas.

Negro: O suspeito natural

Anos atrás, ainda sem muita cobertura em redes sociais, a mídia tradicional falava de um caso de um jovem negro que, atrasado, corria pela rua com seu violino e foi parado pela polícia que lhe indagou de quem havia roubado o instrumento. O músico só foi liberado porque a polícia "pediu" que ele provasse a propriedade do objeto musical tocando uma música no violino.

É bem verdade que o "não lugar" destinado aos negros na sociedade colonial e pós-colonial reservou a negros e negras a sina de que o domínio de nobres saberes, que constituem privilégio dos homens brancos, é algo extraordinário. Isso, pois jogar xadrez, tocar violino e dançar ballet, são coisas, aparentemente, de pessoas brancas, incomuns a maioria dos pretos e pretas do Brasil, de modo que ver um preto correndo com um violino, aos olhos de uma estrutura racista, só pode ser roubo.

Na atualidade, muito se repercutiu sobre o caso do violoncelista que, abordado pela polícia com seu instrumento, foi levado à delegacia e, em razão de decreto de prisão fundada em reconhecimento fotográfico, foi preso e processado.

Nunca se soube muito bem e, tampouco se saberá (ou se sabe as escancaras), como a foto de um jovem negro, primário, sem qualquer "passagem" pela polícia vai parar em um álbum fotográfico de suspeitos.

Em maio do corrente ano, um ciclista negro em Goiás, Cidade Ocidental (arredores do DF) foi violentamente abordado por policiais militares quando fazia manobras em um parque público.

Por fim, outro jovem negro, no Leblon, portando sua bicicleta elétrica, esperando sua namorada em frente ao shopping, é abordado por um casal branco, que o questiona sobre o furto de uma bicicleta.

Nesse último caso, o instrutor de surf estava parado e o casal branco teria chegado afirmando "essa bicicleta é minha". O jovem negro tentou provar a propriedade com fotos antigas do veículo no seu celular, mas o convencimento só ocorreu quando o rapaz branco, deliberadamente testou o cadeado da bicicleta e percebeu que sua chave não abria.

Comum aos músicos e aos ciclistas após esses episódios: o MEDO. Alguns relatam que se sentem presos em casa. A vida nunca mais foi a mesma. Não é psicologicamente fácil notar que se é "um suspeito" natural e com isso está sujeito a abordagens de agentes do Estado ou mesmo de particulares.

Os danos psicológicos do racismo são denunciados há longa data, basta lembrar os escritos do psiquiatra e filósofo negro Franz Fanon e como se viu acima, os episódios dessa natureza são pretéritos, presentes e futuros.

Fato. Negros e negras são suspeitos naturais. Fruto de um racismo que estrutura a sociedade, consome as instituições e transborda nos olhos de boa parte dos cidadãos de bem do mundo.

Brancos: a vítima em potencial

Quando se fala em privilégio da branquitude, está a se tratar de um conjunto de vantagens que as pessoas que nascem brancas acabam por receber. Dificilmente sofrem abordagens policiais. Possuem maior possibilidade de empregabilidade, maior aceitação social, menos danos psicológicos, melhor autoestima, etc, etc, etc.

A estrutura social lhe é naturalmente acolhedora e empática. Notem. No episódio do Leblon, alardeia-se que o casal, após atitude motivada por racismo, perdeu o emprego. Não foram poucas as vozes que acharam um exagero, uma punição descabida, desproporcional. Há um sentimento natural de solidariedade, afinal, pode ter sido apenas um erro e todos tem direito de errar. O casal foi chamado a delegacia para prestar esclarecimentos, o que, aos olhos de muitos, a polícia deve ter mais o que fazer, pois agora tudo é vitimismo, tudo é racismo.

Não obstante, quantas pessoas negras são presas preventivamente sem sequer serem ouvidas só porque suas fotos pararam em um álbum de suspeitos? Quantas dessas perdem seus empregos e quantas nunca mais recuperam sua empregabilidade porque possuem uma "passagem"? Esse fato que é cotidiano e massificado no quadro da justiça criminal brasileira é protegido pela total insensibilidade. Não se vê, fora os chamados “pessoal dos direitos humanos”, ninguém preocupado com essas consequências danosas.

Em nossa experiência como juiz criminal, nos deparamos com inúmeros casos de prisões provisórias de negros, que destroem suas vidas, seguidas de absolvições e que sempre nos constrange e, raras vezes, notamos o mesmo constrangimento em outros operadores jurídicos que naturalizam essas cenas.

Mas quando uma “injustiça” acontece com pessoas brancas, há sempre uma comoção. O que há de errado nisso? Absolutamente nada. Toda injustiça deve gerar indignação. Mas a indignação seletiva é um sintoma grave do racismo que impera na sociedade brasileira. Em um mundo com humanidade sólida, construída para todos os seres humanos, a injustiça contra qualquer pessoa preta, branca, indígena, deveria ser um sofrimento generalizado. Não é o que ocorre.

No caso “dos inocentes do Leblon”, o jovem negro, suspeito de furto da bicicleta, logo perdeu a condição de vítima. E o casal, que perdeu o emprego, que foi chamado a delegacia, tornou-se vítima de um exagero, de um radicalismo, de uma “sociedade polarizada”, de uma ‘ideologia esquerdista”. Afinal, brancos são vítimas naturais.

 Sobre essa polarização racial é importante alertar. O termo raça não foi criada por pretos. Pessoas brancas, a partir do século XVI, com a necessidade de dominar pessoas e territórios, cunharam a raça, diferenciando seres humanos, inferiorizando todos que não eram brancos eurocêntricos, escravizando negros e negras. É preciso saber, então, quem foi que dividiu o mundo entre pretos e brancos.

O processo de criminalização primária e secundária

Ocorre que essa tensão política, em uma sociedade imersa na era digital, na qual não temos sequer mais uma massa, mas um enxame digital, as relações se dão nas pontas de um dedo e vivemos em um panóptico digital[2]. Inevitável um clima de expansão punitiva e de desejos e fantasias punitivas.

Ocorre que o processo de criminalização primária e secundária é marcado pela seletividade e agora com as exigências do espetáculo.

Os episódios relatados nos revelam algumas questões. 1) A dificuldade de se enquadrar criminalmente questões que historicamente sempre foram um "indiferente"; 2) A crença dos vulneráveis no sistema de justiça criminal como se um instrumento de opressão de indesejáveis um dia pudesse se constituir em instrumento de proteção de sujeitos vulneráveis; 3) O sistema sempre pode se voltar contra você.

Um fato é importante. A divulgação midiática de atitudes racistas, constituam elas crimes ou não, além de sanções sociais, podem ocasionar, ainda que extraordinariamente, ainda que em uma tentativa de demonstrar que o sistema penal funciona (olhem, brancos e ricos também podem ser pegos pelo sistema penal!), persecuções criminais.

As abordagens racistas podem, a depender da dinâmica, ensejar processos e/ou punições por calúnia, crime de racismo, injúria racial, exercício arbitrário das próprias razões, abuso de autoridade, etc, etc, etc. O sistema penal tem um poder tão expansivo que uma hora, perde-se o controle, e ele pode pegar você, homem branco, rico, heterossexual e racista. Embora isso seja raro.  Já você, homem preto, ao entrar como vítima em uma delegacia, sendo o suspeito natural: Cuidado! Você pode sair como investigado, envolvido ou indiciando.

Há uma grande diferença. Quando ocorre o indiciamento de um branco, como no caso, é tão excepcional como preto tocar violino, há empatia, as leis funcionam. Notem o verdadeiro ladrão de bicicleta do Leblon. Era branco. Foi pego com a roupa que estava nas imagens da câmera de segurança e com a bicicleta produto de crime. Ostentava muitas anotações em sua folha de antecedentes. E, acertadamente, foi solto porque o crime não foi com violência ou grave ameaças. Muitos criticaram a decisão. Repita-se. Acertada, pois em uma sociedade democrática, a prisão deve ser exceção (para todos). O erro reside nos inúmeros casos de pessoas pretas que são presas em situações menos desfavoráveis que essa e são mantidas presas por decisões judiciais que reproduzem o racismo estrutural.

Mas não é só isso. Se você, negro, é o suspeito natural, a estrutura estatal que opera animada pelo que se chama racismo estrutural, de um modo ou de outro irá te atingir. Voltemos às bicicletas.

O jovem negro da bicicleta elétrica do Leblon, tal qual ocorre na metamorfose de Kafka, "entra" na delegacia como vítima e se transforma, muito rapidamente, em um suspeito de receptação.

Afinal, negro, como você está com essa bicicleta elétrica? Você não comprou nova, em uma loja.  Qual a origem desse bem? Onde está a nota fiscal?

Algumas coisas devem ser pensadas para entender como aquilo que subjaz as práticas explica tanta diferença. Se ainda nos recordamos de algo do direito civil, a propriedade das coisas móveis é transmitida pela tradição (entrega) e mesmo quando transmitida por quem não é dono, se oferecida ao público em leilão ou estabelecimento comercial, produz efeito para o adquirente de boa fé. Vale transcrever:

Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição.

Art. 1.268. Feita por quem não seja proprietário, a tradição não aliena a propriedade, exceto se a coisa, oferecida ao público, em leilão ou estabelecimento comercial, for transferida em circunstâncias tais que, ao adquirente de boa-fé, como a qualquer pessoa, o alienante se afigurar dono.

Como referimos acima, na sociedade digital, na qual as relações se dão na ponta de um dedo, o Registro de Ocorrência foi feito pela internet, assim como a aquisição da bicicleta. Os estabelecimentos comerciais não concentram mais suas vendas em lojas físicas, mas sim no ambiente virtual. Grupos de desapego, sites de venda de produtos usados, tudo isso impulsiona, em grande parte, a circulação de mercadoria, até mesmo comida. Ademais, esse quadro, inclusive, se ampliou sobejamente no contexto da pandemia.

Desse modo, a informalidade na aquisição de bens, a adequação social das práticas, no mínimo faz presumir a boa fé das pessoas (menos das negras). Mas a essa presunção de boa fé ainda se acresce um dado objetivo de boa fé quando se tem a segurança de levar uma discussão sobre um bem adquirido pela internet para as vias policiais. Quem, ciente de que adquiriu um produto furtado, iria levar essa questão ao debate policial? Difícil pensar em um criminoso que vá à delegacia registrar ocorrência de um crime tangente ao seu.

Mas quando se é, negro - o suspeito natural - a boa fé, além de não ser presumida, mesmo diante de sua evidência, parece ser destruída pelo racismo estrutural. Suspeita-se do preto, investiga-se o preto. Ele deve ter uma multa de trânsito, deve ter o nome no Serasa, deve esconder alguma "bronca". Ele não pode estar com a razão, quem é produzido para estar nas páginas policiais como suspeito não pode posar de vítima na opinião pública, como diz Emicida:

"Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles num guenta te ver livre, imagina te ver rei"
O abutre quer te ver de algema pra dizer:
"Ó, num falei?!"

 Ó, num falei... pode não ter furtado, mas é receptador! Eis a cena, eis a sina.

Em mais de 20 anos de magistratura, raras vezes examinamos processos de roubo e furto, nos quais constam as notas fiscais dos produtos subtraídos em ações criminosas. O debate sobre nota fiscal, no qual se colocou o jovem negro do episódio do Leblon, nos despertou para analisar esse aspecto em três casos emblemáticos que ganharam notoriedade na mídia e nas redes sociais.  

Danilo Felix. Funcionário da Universidade Federal Fluminense. Jovem negro. Preso por 58 dias, através de reconhecimento fotográfico. Ao final, absolvido. A vítima branca alegou lhe ter sido subtraída uma motocicleta e um celular. Não consta dos autos do inquérito (processo 0020686-07.2020.8.19.0002) nota fiscal da moto, documento de circulação do veículo, tampouco nota fiscal do celular.

Angelo Gustavo Pereira Nobre (Gugu, produtor cultural), reconhecido por fotografia nas redes sociais, preso e condenado por roubo de veículo e um celular. Nos autos do inquérito não consta nota fiscal ou documento de propriedade dos bens (processo 0045151-59.2015.8.19.0001).

Luiz Carlos da Costa Justino, violoncelista, reconhecido por fotografia por uma vítima branca. Foi preso, processado, ao final absolvido da acusação de roubo de um celular. Não há nos autos do inquérito nota fiscal do aparelho celular relatado pela vítima (processo 0055889- 35.2017.8.19.0002).

No âmbito de uma investigação envolvendo uma atitude racista, não havendo controvérsia sobre ser ou não a bicicleta elétrica do casal branco, já que o próprio casal identificou, após testar o cadeado, não se tratar do objeto do furto, cabe indagar como tão cuidadosamente se levantou a "cadeia de aquisição" da bicicleta portada pelo jovem negro? Repita-se: não é comum que vítimas tenham que apresentar notas fiscais ou prova de propriedade. Ao que parece, na prática, acertadamente, presume-se a boa fé das pessoas (frise-se: brancas).

Parem de nos prender, parem de nos matar. Não queremos a prisão de brancos. Nem mesmo de brancos racistas. Queremos um mundo livre do peso da raça como diria Mbembe3.

Como sair da grande noite?  

Deivison Faustino4 lembra bem a assertiva de Fanon de que “é branco que cria o negro, mas é o negro que cria a negritude”, ou seja, a negritude surge como reação ao racismo branco. De fato, é preciso criar um mundo realmente humano, de reconhecimentos recíprocos5, repita-se, livre do peso da raça. Mas como sair dessa grande noite?

...a preocupação com a reconciliação, por si só, não pode substituir a exigência radical de justiça. Para que aqueles que antes estejam de joelhos e curvados sob o peso da opressão possam se levantar e andar, é preciso que a justiça seja feita. Portanto, não se escapará da exigência da justiça. Ela requer a libertação do ódio de si e do ódio ao Outro, primeira condição para que possamos voltar à vida. Ela requer igualmente que nos libertemos do vício da lembrança do nosso próprio sofrimento, que caracteriza toda consciência da vítima. Pois se libertar desse vício é a condição para reaprender a falar uma linguagem humana e, eventualmente criar um mundo novo6.  

Mas como perder o vício de lembrar de nosso sofrimento se toda hora são reabertas as cicatrizes? Os açoites são relembrados, os estupros das nossas ancestrais são relembrados, o sequestro e cárcere privado, os enforcamentos e os linchamentos, o ferro ao pescoço e a máscara de flandres, tudo isso é relembrado, nos corpos de pretas grávidas assassinadas, de transeuntes pretos abatidos no jacarezinho, no entulho de corpos negros nas prisões por juízes brancos como no passado, por reconhecimentos fotográficos que nos levam a prisão, por balas cravejando nossas crianças, por abordagem em portas giratórias ou em bicicletas elétricas... e nós que suportamos 350 anos dessas crueldades, e 130 anos de ilusão abolicionista com o genocídio negro7 em curso, nos episódios do Leblon temos que ouvir comentários sobre o casal que virou vítima porque perdeu o emprego? Não tiremos os olhos da vítima: o jovem negro, suspeito natural concebido momentaneamente como "ladrão de bicicleta".

Quem é branco não sabe o que é ser preto. Ser parado insistente e cotidianamente pela polícia. Ser travado em portas giratórias. Pretos perdem o emprego todos os dias. Pior, sequer são empregados. São ridicularizados pelos espetáculos recreativos e vigiados em lojas e supermercados, quando não mortos. 

Diante do oceano, o racismo nos leva a ver apenas uma gota de água.

Sair da grande noite... "Isso pressupõe que o sofrimento que foi imposto aos mais fracos seja posto a nu: que seja dita a verdade sobre aquilo que foi suportado: que renunciemos à dissimulação, à repressão e à negação".8

A cena do furto da bicicleta no Leblon é a tradução realista de uma noite da qual devemos sair.

__________

1 In: SANCHEZ, Renata Latuf de Oliveira. a cenografia e o espaço-tempo no neorrealismo como indicador da sociedade italiana no pós-guerra: Uma breve análise a partir de Roma, Cidade Aberta e Ladrões de Bicicleta. Revista Eletronica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade . v. 7, n. 10, jan /ago (2015). Dossiê História Urbana: a configuração de um campo conceitua.

2 HAN, Byung-Chul. No enxame. Perspectivas do digital. Petrópolis. Ed. Vozes, 2018. 

3 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2017.

4 FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.

5 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

6 MBEMBE, Achille. Sair da grande noite. Petrópolis, Ed. Vozes, p. 54-55.

7 Sobre o tema: NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Perspectivas, 2016.

8 MBEMBE, Sair da op. cit. , p. 55.

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